Luanda - A África do Sul viveu, desde quinta-feira, 08, uma onda de violência, com centenas de manifestantes a saírem às ruas, em protesto contra a prisão do antigo Presidente Jacob Zuma, condenado a uma pena de 15 meses por desrespeitar uma decisão do tribunal constitucional.
Por João Gomes Gonçalves / Angop
A contestação, que durou cerca de 12 dias, começou a 29 de Junho último, quando o Tribunal Constitucional da província de KwaZulu-Natal, onde nasceu Zuma, há 79 anos, sentenciou que o mesmo deveria começar a cumprir a pena quarta-feira, 07 de Julho.
A ministra interina da Presidência, Khumbudzo Ntshavheni, citada quarta-feira, 21, pela imprensa, afirmou que os distúrbios resultaram na morte de 276 pessoas e na detenção de outras duas mil 254.
O Serviço da Polícia sul-africana (SAPS) investiga os assassinatos de 168 pessoas, sublinhando que a situação estabilizou-se completamente nas províncias de KwaZulu-Natal e de Gauteng, onde as manifestações foram mais virulentas.
Notícias veiculadas por vários órgãos de informação nacionais e estrangeiros baseados naquele país indicaram que a violência incluiu o bloqueio das estradas, visando ainda as lojas de Joanesburgo, pertencentes a migrantes paquistaneses, Bengaleses, Etíopes e Somalis, mas também, supermercados sul-africanos.
A crise de bens e serviços agudizou-se. A maior refinaria do país que fornece um terço dos combustíveis encerrou. Algumas estações não estavam a ser abastecidas e outras racionalizavam, enquanto a associação dos automobilistas alertava para futuras penúrias.
O vandalismo não poupou o centro comercial Brokside Mall de Pietermaritzburg, que foi incendiado segunda-feira, 12, disse o porta-voz da Polícia, Lirandzu Themba.
A Agência de noticias Reuters, um dos orgãos que estava a cobrir o evento, considera que a detenção e consequente prisão de Zuma foi um teste à capacidade da Nação do pós-apartheid aplicar a lei de forma justa, mesmo contra grandes figuras políticas e outras.
O desenvolvimento dos casos judiciais que implicam Zuma têm causado indignação entre os seus apoiantes, chegando a expor publicamente as fissuras existentes dentro do ANC, com a agência de inteligência nacional a advertir que os incitadores da violência enfrentariam acções judiciais.
No dia 14 de Julho, a ministra da Defesa, Nosiviwe Mapisa-Nqakula, formulou ao Parlamento um pedido visando o desdobramento de pelo menos 25 mil soldados nas regiões instáveis para enfrentar as manifestações.
Sexta-feira, 16, num discurso à Nação, em Durban, o Presidente Cyril Ramaphosa, sem citar os autores, disse que os distúrbios e saques na África do Sul foram provocados e planeados.
“Foram provocados. Há pessoas que planearam e coordenaram isso para provocar uma insurreição. Vamos processar essas pessoas. Identificámos um bom número delas. Não permitiremos a anarquia e o caos no país”, denunciou Ramaphosa.
Paralelamente, vários responsáveis do actual governo acusaram abertamente os apoiantes de Jacob Zuma de incentivadores dos distúrbios.
“As manifestações foram organizadas por membros do ANC, militares, elementos da sua guarda pessoal e outras pessoas próximas a si, que exigiam a sua libertação”, afirmaram.
A Polícia sul-africana investiga 12 suspeitos de serem os instigadores dos últimos actos de violência.
O ANC, no poder na África do Sul desde 1994, aconselhou os seus militantes e simpatizantes a manterem a calma e reiterou o "apoio inequívoco" ao Estado de direito.
Num comunicado, o porta-voz do ANC, Pule Mabe, lembrou que o partido “sempre defendeu a supremacia da Constituição, o Estado de direito e a independência do poder judicial”, reconhecendo, entretanto, o período “difícil” que a sua formação política atravessa.
A União Africana (UA) reagiu e condenou “firmemente” o aumento da violência que continua a matar as pessoas e a incitar ao saque do país, apelando a uma rápida reposição da ordem pública.
Zuma e a corrupão
Em Março de 2018, Jacob Zuma, Presidente da África do Sul (2009 -2018), foi acusado de corrupção, nomeadamente no quadro de um processo de compra de armas no valor de 30 mil milhões de randes, feita pelo governo dirigido por Nelson Mandela, primeiro Presidente da África do Sul do pós-apartheid.
O chamado “caso Zuma” foi um programa gizado nos anos 1998-1999, que visava modernizar o equipamento de defesa das Forças Armadas sul-africanas, que incluía a compra de corvetas, submarinos, helicópteros utilitários ligeiros, aviões de treino de combate e aviões ligeiros de combate.
Duas filiais sul-africanas do grupo francês de electrónica e de defesa foram suspeitas de tráfico de influência com altas personalidades do ANC, o partido no poder.
Em 2000, a célula de combate à corrupção da unidade escorpião iniciou um outro caso judicial contra ele o “Thomson-CSF”. Mas, em Agosto de 2003, o então procurador-geral da República, Bulelani Ngcuka, desistiu dos processos contra Jacob Zuma, embora tivesse afirmado dispor de provas suficientes para processá-lo, bem com a filial sul-africana do grupo Thomson-CSF.
Na altura, o ministério público limitou-se a processar Schabir Shaik, conselheiro financeiro de Zuma, com a acta de acusação a revelar que um pacto de corrupção havia sido assinado entre as filiais do grupo francês e Jacob Zuma, a quem o primeiro pagaria uma renda anual de 500 mil randes (62 mil e 500 euros), a troco da sua protecção contra qualquer eventual inquérito sobre a irregularidade do contrato, mas também o seu “apoio permanente” para “futuros projectos”.
Shabir Schair terá sido o intermediário entre os corruptores e o “corrompido”, uma revelação que sempre foi negada pela empresa francesa.
Mesmo contestando qualquer desejo de corrupção, Schabir Shaik reconhecia o pagamento de cerca de 160 mil euros a Jacob Zuma, entre 1995 e 2002, quando este era ministro provincial do Kwazulu-Natal.
Em Junho de 2005, Sahbir Shaik, de descendência indiana, foi condenado a 15 anos de prisão, por corrupção e fraude.
No veredicto, o juiz do Alto Tribunal de Durban acusou Jacob Zuma, afirmando que “provou-se que o pagamento era feito com o dinheiro destinado a corromper e influenciar Jacob Zuma a tomar decisões contra os seus poderes constitucionais, proteger os interesses de Shaik e das suas empresas”.
O recurso de Schabir Shaik foi rejeitado. Finalmente, o empresário foi posto em liberdade, em 2009, por razões médicas.
A decisão de condenar Shaik levou à destituição de Jacob Zuma, então vice-Presidente da República, 48 horas depois, provocando uma profunda crise no seio do ANC, que opôs os partidários daquele e do Presidente Thabo Mbeki.
Em Abril de 2009, algumas semanas antes da eleição de Jacob Zuma, o tribunal retirou-lhe todas as queixas.
Em 2007, durante o congresso do ANC, em Polokwene, Zuma vinga-se, e afasta Mbeki da liderança do partido, apoderando-se do mesmo com o apoio dos militantes e, em 2009, através de eleições gerais, assume a Presidência da República.
Em 2011, Zuma, Presidente da República, nomeia uma Comissão de Inquérito, composta por juízes para inquirir sobre as alegações de corrupção, e no fim de 2015, o relatório da referida Comissão retira as alegações de corrupção e de fraude no processo de aquisição de armas contra o Chefe de Estado.
Contactado em 2016 pela oposição, o Alto Tribunal de Pretória julgou “irracional” a decisão da Procuradoria, tomada em 2009, de abandonar “por vício de forma”, as 783 acusações contra Jacob Zuma, no contrato de compra de armas.
Em Outubro de 2017, o Tribunal Supremo abriu definitivamente o caminho para um novo processo por corrupção, anulando, também, definitivamente, a decisão da procuradoria de abandonar as queixas contra Zuma.
O político sul-africano é também suspeito de, na segunda metade do seu mandato, ter facilitado valiosos contratos públicos e vantagens indevidas aos Gupta, uma família de empresários de origem indiana à qual é ligado.
Numa das suas edições, o jornal “Jeune Afrique” revela que, em Julho de 2015, o seu filho Duduzane Zuma foi acusado de ter participado num encontro durante o qual, Ajay, um dos irmãos Gupta, propôs o cargo de ministro das Finanças a Mcebisi Jonas, então vice-ministro.
O antigo ministro das Finanças, Pravin Gordhan, exonerado em Março de 2017 por Jacob Zuma, e actualmente encarregue do portfólio das Empresas Públicas, calculou em 100 mil milhões de randes (seis mil milhões de euros) o valor dos fundos públicos desviados no país nos últimos anos.
O mesmo fará parte das várias testemunhas a passarem perante a Comissão, a partir de 21 de Agosto de 2021.
Pouco depois da destituição de Zuma, os seus advogados reiniciaram uma batalha jurídica, pedindo mais tempo para se preparar os processos.
No decurso do mesmo, o acusado, queixando-se de problemas de saúde, faltou a várias audiências da Comissão que investigou os diversos escândalos de corrupção ao longo da sua permanência na Presidência sul-africana.
Em Maio de 2021, Jacob Zuma foi convocado perante o tribunal de Pietermaritzburg, para responder pelas 16 acusações, entre as quais a de fraude, tráfico de influência e extorsão, ligados à compra de aviões de combate, patrulhadores e equipamento militar, quando era vice-Presidente da República.
Depois de o processo ter sido adiado, o mesmo foi retomado a 26 de Maio, levando à condenação de Zuma a 15 meses de prisão, por desobediência às ordens da justiça, prosseguindo, no entanto, os processos contra corrupção por ele supostamente praticada, antes e durante os seus dois mandatos.
O duelo Zuma-Ramaphosa
O que actualmente se passa na África do Sul também é fruto das rivalidades entre Jacob Zuma, personificado pela sua esposa, Nkosazana Dlamini Zuma, e Cyril Ramaphosa, cujo duelo, além de fragilizar o partido no poder, conduziu às manifestações anti-governamentais dos últimos dias.
Foi prova disso a corrida à liderança do ANC, ganha por Cyril Ramaphosa.
Num artigo que publicou na edição do jornal “Jeune Afrique”, de 06 de Maio último, intitulado “África do Sul: Entre Zuma e Ramophosa, o duelo que fragiliza o ANC”, Romain Chanson escreve a dado passo: “Encarregue de investigar sobre as suspeitas de corrupção que visam o antigo Presidente, a Comissão Zondo cristaliza as divisões no seio do ANC”.
Para o jornalista francês, enquanto o principal acusado se recusava a testemunhar, o actual Chefe de Estado, Cyril Ramaphosa, foi ouvido a defender a ideia de um partido que deve esquecer os anos de Zuma.
A 29 de Abril último, o Presidente Ramaphosa reconheceu, perante a Comissão de Inquérito, que a alegada corrupção durante o mandato do seu antecessor dividiu o partido no poder na África do Sul e debilitou as instituições do Estado.
Naquele dia, Cyril Ramaphosa compareceu, pelo segundo dia consecutivo, perante a Comissão de Inquérito de Joanesburgo, que investiga as alegações de que milhões de dólares foram saqueados dos cofres do Estado sul-africano nos últimos dez anos por funcionários do governo que trabalhavam em conjunto com indivíduos e empresas privadas.
Perante a Comissão, e em nome do ANC, Ramaphosa disse que não arranjaria desculpas pelo fracasso do governo em erradicar a corrupção.
“Todos reconhecemos que a organização poderia e deveria ter feito mais para evitar o abuso de poder e a apropriação indevida de recursos que descreve a era da corrupção de Estado", disse.
O Chefe de Estado foi questionado por que é que o seu partido assistiu, impotente, enquanto milhões estavam a ser saqueados.
"As diferenças sobre a existência ou não da corrupção de Estado, a sua extensão e forma, assim como o que deve ser feito em relação à mesma, contribuíram para divisões no seio do Comité Executivo Nacional e outras estruturas do partido ANC", admitiu.
“Regozijamo-nos em ter uma justiça sólida e independente”, declarou, na altura, no fim da audiência, prometendo fazer com que os excessos do passado não se repitam.
Para o efeito, o Comité Nacional Executivo do partido accionou uma “resolução de afastamento”, segundo a qual, qualquer membro do ANC, acusado num caso grave, deve ser afastado, dando às personalidades visadas um prazo de 30 dias para recorrerem, sob pena de serem definitivamente excluídos.
A Primeira vítima da resolução foi o secretário-geral do ANC, Ace Magashule, em funções desde 2017, acusado de desvios no contrato público de desminagem.
A Comissão quis também saber o porquê de o Comité de Destacamento de Quadros do Congresso Nacional Africano ter recrutado pessoas acusadas de má administração das empresas estatais e permitido que o interesse privado ofuscasse o seu mandato público.
O financiamento do partido ANC por pessoas que recebem benefícios do governo também foi alvo de escrutínio.
Comentando o facto, a analista Suzan Booysen, citada pelo “Jeune Afrique”, afirmou que o Presidente sul-africano foi estratégico ao evitar dar muitos pormenores sobre como a alegada corrupção aconteceu.
“Vimos um Ramaphosa a esquivar-se triplamente de um campo minado de possíveis implicações. Primeiro, implicações sobre si mesmo; segundo, de qualquer colega no partido ANC e, por fim, de incriminar o próprio partido como tal. Foi muito hábil em mover-se pelo campo minado", argumenta.
Onga Mtimka, outro analista político, discorda e diz que Ramaphosa deu um bom exemplo ao sujeitar-se ao interrogatório.
"Era importante para a democracia ter o Presidente a responder às perguntas num processo que é quase judicial. O que isso faz é ressaltar a predominância do Estado de direito e do constitucionalismo sobre o poder político", sublinha.
Cyril Ramaphosa regressou à Comissão de Inquérito no final do mês seguinte, onde respondeu às perguntas sobre corrupção, principalmente por parte de funcionários do governo durante o período em que estava a substituir o antigo Presidente Jacob Zuma.
Por sua vez, Zuma, que foi implicado por mais de trinta testemunhas na Comissão, recusou-se a regressar para responder a mais perguntas, dizendo que preferia ir para a prisão, a sujeitar-se a um processo destinado a criminalizá-lo.