Renascença: A barragem e as águas da discórdia

     África           
  • Luanda     Terça, 27 Setembro De 2022    15h46  
Rio Nilo no deserto do Saara
Rio Nilo no deserto do Saara
Divulgação

Luanda - As relações entre o Egipto, o Sudão e a Etiópia, os três países banhados pelo rio Nilo Azul, continuam imersas num clima de tensão latente desde o lançamento do projecto da Grande Barragem Etíope da Renascença (GERD).

(Por: João Gomes Gonçalves)

Acredita-se que os três Estados têm as suas relações marcadas por uma dimensão mística e histórica por causa das chamadas “águas da discórdia”, mas, as convenções de Helsínquia (1996) e de Nova Iorque (1997), sobre os rios internacionais não navegáveis, não reconhecem os mitos, apesar de as técnicas actuais parecerem dar-lhes corpo.

A falta de entendimento sobre a exploração das águas do Nilo Azul fez surgir na cena daquela região um novo actor chamado Egipto que, de forma virulenta, se juntou às reivindicações do Sudão, quanto à defesa dos seus direitos de acesso à água potável do rio, já que quanto mais curto for o tempo de enchimento das albufeiras da barragem da Renascença, maior será a diminuição do débito à jusante e vice-versa.

A expansão demográfica sustentada e as mudanças da conjuntura regional põem em causa os direitos históricos, base da preponderância do Egipto e do Sudão, que no passado rejeitava a participação da Etiópia nas negociações, negando-lhe, como na época colonial, todos os direitos sobre o rio Nilo.

A GERD, com capacidade de produzir 6.448 MW e cuja construção se iniciou, em 2011, com um crédito público e um financiamento da China, revela-se, assim, como um dos maiores pomos das discórdias no Corno de África.

Enquanto a Etiópia pensa encher as albufeiras num período de três a quatro anos, Cairo, apoiado por Washington, defende que a operação deve durar 12 anos para não afectar a quantidade de águas abastecidas ao Egipto por um dos maiores rios do mundo em extensão, a par do Amazonas.

O Nilo fornece 97 por cento das águas de irrigação para a agricultura e para o consumo a mais de 100 milhões de habitantes egípcios.

As tentativas de conciliação tripartida entre o Egipto, o Sudão e a Etiópia, como quando da criação, em 2015, de um Comité de Peritos para avaliar os impactos socioeconómicos da barragem, seguido de uma declaração de princípio assinada pelos três países, continuam “letra morta”.

Em 2021, a Etiópia informou Cairo e Cartum da sua decisão de reiniciar o enchimento das albufeiras, uma ideia rejeitada pelo ministro egípcio da Irrigação, Abdel Aty, que denunciou uma “violação” do Direito e das normas internacionais que regulam os projectos de construção nas bacias partilhadas dos rios.

Paralelamente, e no mesmo período, o Ministério sudanês dos Negócios Estrangeiros denunciou uma “violação flagrante” do Direito Internacional e qualificou a iniciativa etíope como “um risco de ameaça iminente”.

Para Addis Abeba, que considera a barragem de 74 mil milhões de metros cúbicos de água um projecto federador face às particularidades regionais com risco de deslocamento, o acabamento do empreendimento é uma prioridade política.

Quando a obra terminar, a Etiópia poderá fornecer electricidade aos seus 110 milhões de habitantes, dos quais os 65 por cento que ainda não beneficiam dela, enquanto a sua capacidade de produção vai possibilitar a exportação do produto para o Sudão, o Quénia, o Djibuti, a Eritreia e o Egipto, por uma renda anual de 70 milhões de dólares.

Além disso, o primeiro-ministro Abiy Ahmed Ali vê nela um factor de unidade para os etíopes a braços com conflitos étnicos, considera Costantinos Berhutesfa Costantinos, professor da universidade de Addis Abeba.

Implicação dos Estados Unidos e da China

Segundo o geógrafo David Blanchon, apesar do reiterado sonho africano de ver os problemas do continente resolvidos por africanos, o papel dos Estados Unidos, da China e da Rússia, que se apresentou como medianeira, deu a entender que a vontade destas grandes potências é, no mínimo, imiscuir-se no assunto em questão, em detrimento da União Africana (UA), cujo papel foi considerado marginal.

A evidência disso foi tão notória que, depois de assumir a chefia da Casa Branca, em 2017, Donald Trump, acérrimo defensor dos interesses egípcios, e o Banco Mundial (BM) apadrinharam as negociações de Novembro de 2019.

Em 2011, o BM recusou-se a financiar o início da construção do empreendimento hidroeléctrico, e, em Outubro de 2020, Trump declarou abertamente que o Egipto iria destruir aquela barragem.

Pouco antes das declarações de Trump, os EUA já haviam suspendido as suas ajudas financeiras em represália à decisão da Etiópia de iniciar o primeiro enchimento das albufeiras sem “um prévio acordo”, em Outono de 2020.

Seguro do apoio indefectível americano, o Presidente egípicio, Abdel Fattah el-Sissi, confirmou mais tarde que as suas Forças Armadas estavam prontas “para defender a segurança nacional, dentro e fora das suas fronteiras”.

O jogo de Washington, na região sob o mandato de Donald Trump, perturbou sobremaneira as negociações, ao ponto de incitar alguns a fazer o uso da força.

A China é apontada como um dos maiores parceiros da Etiópia, com uma assistência de 2,75 mil milhões de dólares, em 2020, enquanto Addis Abeba teria assinado com Moscovo, em Julho de 2021, vários acordos, visando reforçar a cooperação militar.

Em virtude desses convénios, a Etiópia anunciou ter criado “todas as condições” para proteger e defender a barragem da Renascença, nessa altura em que a crise aumenta entre o Egipto e o Sudão.

O papel da ONU

Ainda em Julho de 2021, o Egipto pediu o apoio do Conselho de Segurança da ONU à sua posição sobre um acordo vinculativo sobre os enchimentos e a exploração da barragem, depois de exprimir a sua “estrita rejeição” da iniciativa de enchimento das albufeiras.

A posição do Egipto foi manifestada depois de um encontro que o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Sameh Choukri, manteve em Nova Iorque, com o chefe da diplomacia sudanesa, Mariam al-Mahdi, dois dias antes de uma reunião do Conselho de Segurança.

Em Setembro do mesmo ano, o Conselho de Segurança instou o Egipto, a Etiópia e o Sudão a retomar as negociações sobre a barragem, com o objectivo de se elaborar o texto definitivo de um acordo mutuamente aceitável sobre o enchimento das albufeiras e a exploração da grande barragem, num prazo razoável.

O apelo resultou de uma reunião organizada a pedido da Tunísia, enquanto membro não permanente do Conselho de Segurança e representante do Mundo árabe, em nome do Egipto e do Sudão.

“Não fosse o jogo da China e dos Estados Unidos que torna complexa a negociação, seria a imbricação de factores sociais, económicos e ambientais na margem de um rio, berço de várias civilizações, que evitaria uma possível guerra de águas”, escreve Bouaka Diop, ensaísta senegalês.

O empreendimento em causa, com um investimento de 4,8 mil milhões de dólares, tem 1780 metros de comprimento e 155 de altura, e possui um reservatório para reter 74 mil milhões de metros cúbicos de água.

Desafios estratégicos de Addis Abeba

Não obstante a actual instabilidade político-militar, a Etiópia tem levado a cabo actividades económicas visando desenvolver-se e sobressair como um dos Estados economicamente mais aguerridos do Corno de África.

Numa das edições de 2018, o jornal francês “Le Monde Diplomatique” escreveu que a Etiópia estava no centro de uma região onde as relações políticas, económicas, geoestratégicas e culturais são multidimensionais.

O jornal sublinha que apesar do aumento dos investimentos chineses, a Etiópia mantêm as suas relações, tanto com a Europa, com os Estados Unidos, com o Golfo Pérsico como com a Ásia.

Recorda que, numa década, os investimentos contam-se em dezenas de mil milhões de dólares, no Corno de África, sendo a China o primeiro credor mundial dos fundos públicos para África, arrastando consigo o seu sector privado.

Isso, escreve o periódico, mudou uma grande parte da actual configuração dos países daquela região, e dos da África da costa do oceano Índico, tanto nas suas relações bilaterais com Beijing como nas relações entre si.

Ressalta igualmente que as ambições da China para com a Etiópia, segundo país africano mais populoso depois da Nigéria, residem nas parcerias políticas e estratégicas que ligam ambos os Estados.

Apesar de o corno de África continuar a viver turbulências, por causa de décadas de guerras na Somália e no Sudão, Addis Abeba, a capital etíope, continua a ser a sede da União Africana (UA) e de várias organizações pan-africanas.

A Etiópia continua a ser igualmente um dos três mais importantes países de acolhimento de migrantes africanos idos dos países limítrofes em crise, e o primeiro contribuinte africano das forças de manutenção da Paz da ONU.

Para aumentar os seus acessos ao mar, em julho de 2021, Addis Abeba assinou um acordo com a empresa DP World com sede, em Dubai, visando desenvolver o corredor que liga o porto de Berbera, na Somalilândia.

Situado na rota marítima que liga a Europa e a Ásia, o porto de Berbera é, teoricamente, “um saída natural da Etiópia encravada”, lê-se no documento, revelando que o país de Hailé Selassié quer transformá-lo numa verdadeira alternativa ao porto eritreu de Assab e, principalmente, aos do Djibuti, dos quais continua a depender para o seu comércio internacional.

Em virtude do referido acordo, o DP World e os seus parceiros prevêem investir até mil milhões de dólares, nos próximos 10 anos, para desenvolver a infra-estrutura da cadeia de aprovisionamento ao longo do corredor, com portos secos, parques de contentores, entrepostos, bem como actividades de trânsito e de desalfandegamento, devendo-se criar uma “joint-venture” para a gestão das operações logísticas.

Na sequência do acordo tripartido de gestão assinado, em 2016, e ratificado em 2017, a DP World detém 51 por cento das partes do porto de Berbera, enquanto a Somalilândia e a Etiópia possuem respectivamente uma participação de 30 e 19 por cento.

A empresa dos Emirados Árabes Unidos prometeu investir até 442 milhões de dólares para fazer do referido porto uma importante placa giratória dos transportes marítimos no corno de África.

O porto de Berbera está localizado no golfo de Aden, uma estratégica via navegável que conduz ao Mar Vermelho e ao Canal de Suez.

A Etiópia foi um dos 32 países-membros fundadores da Organização de Unidade Africana (OUA) e o primeiro a assumir a presidência rotativa da instituição, através do seu imperador Hailé Selassié.

Este último foi assassinado, em 27 de Agosto de 1975, através de um golpe de Estado liderado pelo coronel Mengistu Haïlé Mariam, actualmente exilado no Zimbabwe.

O país é detentor de uma das melhores companhias aéreas do Mundo, fundada em 1945, conhecida como a “'Ethiopian Airlines (EAL)”, um nome adoptado em 1965.





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