Angola é possível com a aposta na juventude - Ismael Martins

     Entrevistas           
  • Luanda     Domingo, 27 Junho De 2021    09h15  
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Nacionalista Ismael Martins fala em entrevista para Angop
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Bráulio Pedro
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Luanda – Angola precisa de distribuir melhor os seus recursos e formar melhor os seus filhos, uma vez que a saída da crise passa pela aposta na juventude, afirma, em entrevista à ANGOP, Ismael Martins, antigo conselheiro do Presidente Agostinho Neto.

(Por Stella Silveira, editora da ANGOP)

Nessa conversa, a propósito dos 45 anos da independência nacional que se assinalam a 11 de Novembro, o embaixador de carreira fala da intenção de algumas forças de transformarem Angola num país permanentemente dependente e da sua experiência como político, governante e diplomata ao serviço da ONU, da União Africana e da SADC.

Eis a íntegra da entrevista:

ANGOP- Senhor embaixador, Angola comemora este ano o seu 45.º aniversário. Onde se encontrava por altura da proclamação da independência?  

Ismael Martins (IM) - No dia 11 de Novembro, eu estava na praça 1.º de Maio. A figura que aparece detrás de Agostinho Neto sou eu. Na altura, era membro da equipa do Presidente Neto e estávamos a trabalhar, até ao último minuto, para que a proclamação da República fosse possível. Ao mesmo tempo em que a proclamação era feita por Agostinho Neto, ouvíamos, à distância, o troar de canhões da guerra, em Kifangondo (município de Cacuaco), pois a intenção das forças contrárias a Angola era impedir que a independência pudesse ser proclamada, e muito menos com o MPLA à cabeça.  

ANGOP- Qual o ambiente que se vivia em Luanda?  

IM - Era um ambiente de alegria. A população estava feliz. Aquilo que cantaram alguns dos nossos artistas como o Santocas: “A independência está chegando”. Era uma alegria, uma esperança; era uma novidade que se anunciava para Angola. E foi, particularmente, em Luanda onde a proclamação ocorreu, no nosso 1.º de Maio.

A população vivia, com todo o entusiasmo, o abraçar da nova vida; o fim da era colonial, que, para muitos, significava, de facto, o fim de uma vida impossível, quase, de ser vivida; portanto, momentos ímpares na vida e na História de Angola. 

ANGOP - Como foram estes momentos que antecederam o proclamar da independência?  

IM - Tínhamos uma equipa muito coesa, muito forte, de entrega total. Era o realizar de um sonho que começou quando ainda jovens, quando crianças. O viver a independência e ter Angola como um país diferente era algo que, para muitos de nós, era ímpar. Éramos um grupo de jovens que trabalhava de perto com o Presidente Neto, como Paulo Jorge e o saudoso M´binda. 

ANGOP- Qual era o seu papel na equipa? 

IM – Estava na primeira equipa como conselheiro para as Relações Internacionais e Económicas. A minha formação é económica, e eu tinha sido parte da equipa das Relações Exteriores do MPLA. Eu cheguei a ser o representante do MPLA em Londres, entre 69 e 70. Estudava e estava, também, a representar o partido. Era assim que tínhamos que fazer. 

ANGOP - O que faz um representante do MPLA na guerrilha?

IM – O nosso principal papel era dizer ao mundo o que significava viver sob o jugo colonial português. Era preciso desmentir o que Portugal proclamava pelo mundo, que Angola era uma província portuguesa e estava tudo bem e que os momentos difíceis, como o 61 e o ataque às prisões, eram “obra” dos comunistas. Mas não éramos comunistas, éramos nacionalistas, empenhados em mudar Angola, em criar um futuro brilhante para os angolanos.

ANGOP - Quando é que chega a Luanda?

IM - Venho, pela primeira vez, para o Congresso do MPLA, nas Chanas do Leste. Na Altura, era funcionário das Nações Unidas, era, portanto, funcionário internacional e vim de Genebra (Suíça) para Lusaka (Zâmbia). 

Participámos no “Congresso das Chanas”, em que o MPLA se apresentava dividido em três: O MPLA liderado pelo Presidente Neto, a Revolta Activa e a Revolta do Leste. A ideia era juntarmo-nos, mesmo com as revoltas, para definirmos uma resposta clara a ser dada ao colonialismo português, depois do 25 de Abril.

ANGOP - Quem estava por trás da Revolta do Leste? 

IM - No Leste era o Chipenda. Lembro-me, em 66, de quando terminei a minha licenciatura, nos Estados Unidos, e vou para a parte Leste. Dar es Salaam (Tanzânia) era a nossa representação do Leste, e Daniel Chipenda era o principal representante do MPLA. Em Lusaka, estava o nosso saudoso camarada Aníbal de Melo. Foi aí que visitei as nossas zonas libertadas com o Presidente Neto. 

Por trás da Revolta Activa, não havia um dirigente como tal. Era o chamado grupo dos “militantes intelectuais” do MPLA. Mário Pinto de Andrade, Gentil Viana, Vieira Lopes… Era um conjunto de vários.

Alegavam, principalmente, que a luta armada não era a única resposta ao colonialismo português, deveria haver uma negociação, mas o MPLA, na altura, estava em condições de se impor com a força, representando as forças e o povo angolano, pois precisava de quebrar o regime português e de fazer frente à rejeição do Governo português em acordar e aceitar que Angola deveria ser um país com autodeterminação.  

ANGOP- Pensa que já não havia negociação possível?  

IM - Não havia, porque Angola estava em guerra. Os portugueses, depois de 1961, transformaram Angola num país com uma força expedicionária forte, que muito fez, muito dizimou. Era um regime de Direita, um regime Fascista que não compreendia outra linguagem que não fosse a da força das armas.  

ANGOP - Qual foi o resultado desse congresso? 

IM - Saímos de lá com a decisão de que era importante continuar a nossa resistência armada, para forçar Portugal à mesa das negociações. E foi o que conseguimos fazer logo a seguir, em 1974-1975. 

As facções afastaram-se, mas não estávamos em guerra. Havia uma aproximação entre os elementos que pertenciam às duas revoltas e o MPLA. E foi com o resultado deste falar a mesma linguagem que se conseguiu demover os portugueses. Serviu também para o apoio internacional a favor da Luta de Libertação Nacional. Granjeávamos este apoio não só por parte dos países da então Comunidade Socialista, mas também de países ocidentais, nomeadamente: Holanda, Itália e Inglaterra. A Igreja Católica, na pessoa do Papa, já tinha tido uma reunião com os movimentos de libertação, para pôr em causa a posição errada do regime português.

ANGOP - Então, partem, a 04 de Fevereiro, para Luanda?  

IM - A delegação que depois regressa a Angola parte do Congo Brazzaville, da Tanzânia (Dar es Salaam) e da Zâmbia (Lusaka), porque já estava resolvido o principal problema, que era justamente a rejeição por parte de Portugal de negociar com os movimentos de libertação. Fez-se a negociação.  

ANGOP- Sendo o senhor, já nos anos 60, um alto funcionário da ONU, como se envolve na Luta de Libertação Nacional?  

IM – É um longo caminho. Iniciei antes de 1961, como jovem do Liceu, com Hoji-Ya-Henda, meu colega e camarada do Liceu e Elísio de Figueiredo. Saímos de Angola, antes do 04 de Fevereiro, em 1960, para nos juntarmos ao movimento de libertação, que estava a operar em Leopoldville e Brazzaville. Fazíamos o que os jovens hoje fazem: uma avaliação, um encorajamento, uma vez que os jovens são sempre a força motriz, a principal vanguarda para qualquer movimento revolucionário.

ANGOP - Como chegaram a Leopoldville?

IM - Hoji-ya-Henda, Elísio de Figueiredo e eu saímos acompanhados por um guia que nos levou até Kinshasa. Saímos praticamente “disfarçados de contratados” que iam para o Norte para trabalhar nas fazendas de café. Fomos de carro até Carmona (Uíge) na carroçaria de um carro, de forma que pudéssemos iludir a vigilância da PIDE e do exército, que já estava no Norte. Fizemos uma paragem em Carmona e daí em diante fomos a pé, pela mata, até à fronteira do Congo, em Kimpangu.

ANGOP - Como os primeiros dias da independência foram sem a grande estrutura, Angola contava, apenas, com os quadros que trazia e alguns poucos angolanos que tinham estudado. Qual foi a estratégia do MPLA?

IM – O MPLA não tinha uma estrutura de Governo para automaticamente substituir o regime português. Tínhamos um Governo de Transição, como sabe, com a presença dos três movimentos de libertação da altura. Como deve saber, em 1975, foram proclamadas três independências.  

ANGOP - Por que razão falhou a negociação tripla?  

IM - Falhou porque havia muita influência exterior: aquilo que devia ser feito entre angolanos, de encontrarem uma plataforma comum, e que estava a ser possível até chegarem a Luanda. Houve uma influência muito forte de dentro e de fora, de elementos do regime como de potências exteriores, como os Estados Unidos, que eram fortes aliados de dois dos nossos, refiro-me à FNLA e à própria UNITA, e que achavam que a independência deveria ser assumida por estes movimentos.

É por isso que, ao chegarmos a 1975, apesar do processo negociável e de tudo, houve uma ruptura total. O MPLA viu-se na obrigação e na necessidade histórica de proclamar a independência quando Neto diz: “Angola é a trincheira firme da revolução em África”. E Angola era vista como tal pelos outros países africanos e pela população angolana, claro.  

ANGOP – Fomos, realmente, tratados e aceites como a Trincheira Firme da Revolução em África?  

IM - Os países africanos viam em Angola e no MPLA uma Trincheira Firme da Revolução, e isto é que deu lugar ao apoio inabalável que foi dado ao ANC, da África do Sul, à SWAPO, da Namíbia e à ZANU, do Zimbabwe. Estes eram movimentos que tinham uma causa comum com a nossa. E por isso, sim, Angola era tida e actuou como tal. A África Austral era a única região que ainda estava sob o regime colonial. Os elementos da SWAPO estiveram cá, os elementos do ANC estiveram cá, os elementos da ZANU estiveram cá. Foi a partir daqui que eles puderam formar as suas resistências, para a independência da África Austral.  

ANGOP - Voltamos à independência. E então, como se reergueram nos primeiros anos?  

IM – Reerguemo-nos porque tínhamos: primeiro, uma entrega total; uma entrega ao sucesso do nosso sonho, que era transformar Angola num país independente, e, apesar de não termos os quadros, éramos nós próprios. Na altura, eu tinha 35 anos, éramos todos jovens. Alguns tinham tido experiências de trabalho fora; alguns tinham estudado, mas foi fundamentalmente através dos militantes que estavam em Luanda, em Angola, que conseguimos erguer aquilo que se transformou no aparelho para tomar conta das rédeas da governação de uma Angola que queríamos criar.

Em 1976, fui nomeado o primeiro governador do Banco Nacional de Angola (BNA). Quando chegava ao BNA, sobretudo na segunda-feira, contava os elementos que tinham decidido abandonar: angolanos e portugueses. Não eram só portugueses que se iam embora. Era uma sabotagem permanente. Então, estruturar ou tomar conta das estruturas de um país com base em quadros capazes estava a ser extremamente difícil. Só a entrega total e o combate, de facto, a todas as taras anteriores tornaram possível manter este país de pé.  

ANGOP - Em algum momento pensaram: “demos um passo maior que a própria perna”? 

IM - Alguns de nós, naturalmente. Afinal, não somos todos iguais. Houve vários dos angolanos que se foram embora, pensaram que tinham dado um passo maior que as pernas, por isso se iam embora, não conseguiam ficar. Mas foi o termos ficado aqui, com os angolanos que acreditavam num futuro diferente para Angola e acreditavam no seu povo, que importou.  

ANGOP - Como foi trabalhar com Agostinho Neto?

IM - Agostinho Neto era uma figura carismática, tinha vivido directamente os sacrifícios que lhe foram impostos pelo regime colonial. Fez uma vida de prisão como estudante, em Portugal. O que ele escreve nos seus poemas, sonhar com Angola e aquele sonho de ver as mães que esperavam por nós; ver Angola transformada de facto, num país viável, no país possível, é algo que ele encarava/encarnava e transmitia essa atitude aos quadros com quem trabalhava.

Com Agostinho Neto aprendi muito. Ganhei experiências com a forma clara de analisar e de traçar soluções para os problemas difíceis. Neto era esse tipo de homem. Era um líder, de facto, nato e não um líder que foi feito a correr; um líder que foi feito na experiência, na vivência, nas dificuldades em casa e já a dirigir o movimento. Foi necessário aceitar e viver as dificuldades e tornar possível o sonho de uma Angola diferente.  

ANGOP - Como pensa que se saiu como 1.º governador do BNA?

IM - Encontrávamo-nos em Luanda. Havia quadros que, apesar de nunca terem exercido funções de direcção, eram quadros com experiências de vida e de funcionalismo. Quando me foi dada a tarefa de dirigir e criar o BNA, como a estrutura que temos hoje, uma das primeiras coisas que fiz foi rodear-me dos quadros angolanos que cá estavam. Eu tinha formação prático-teórica, já tinha trabalhado a nível internacional, mas nunca tinha trabalhado em Angola. E eu pensava que juntos, encontrando consensos, encontrando os caminhos, com os angolanos que pensavam e viviam as realidades que eram vividas por todos nós e que tínhamos estado a viver nos anos anteriores, era possível. E penso que foi isso que me encorajou. Trabalhar em equipa com os quadros angolanos, que cá estavam, e alguns estrangeiros que nos vieram dar a mão, só assim foi possível fazer o que fizemos.

Uma das primeiras tarefas que pude realizar foi a troca da moeda. Trocamos a moeda colonial, pela moeda angolana. E isso só foi possível fazer a nível nacional, a partir da participação activa dos bons quadros angolanos que tínhamos, os bons angolanos engajados verdadeiramente em tornar Angola num país possível e sair bem. E fizemos. Acredito que esta troca foi feita sem grandes desastres, sem grandes desaires, naturalmente, e foi feita por angolanos.

ANGOP – De entre os cargos políticos que exerceu, qual o que mais desafios lhe apresentou?

IM – O de ministro das Finanças, porque tínhamos que gerir com pouco. Sabe a quanto é que tínhamos o barril de petróleo? A 8/10 dólares, com necessidades enormes. Tínhamos os diamantes, é verdade, mas Angola não tinha mais recursos e era a partir das Finanças que tínhamos de trabalhar com as outras estruturas do Governo, para tornar possível a realização dos projectos para criar desenvolvimento.

Fiquei nas Finanças durante cinco anos, de 1977 a 1982, e estes foram anos muito difíceis para Angola, mas conseguimos. O que nos torna diferentes é isso. Quando se trabalha em equipa, quando se trabalha com uma visão clara, com um engajamento total e com patriotismo, é possível fazer-se muito com pouco. Penso que os anos que se seguiram, e temos que tirar lições dos anos difíceis, fez-se bem, mas também se fez muito mal a Angola. E temos de corrigir alguns erros que fomos cometendo e melhorar algumas coisas que fomos fazendo bem. Neto dizia que a agricultura é a base e a indústria, o factor decisivo. Eram orientações claras de um líder carismático, mas não conseguimos fazer. Transformar e sair da palavra de ordem para a prática foi sempre muito difícil de se realizar, mas isso justamente porque havia várias forças a puxarem. Não me refiro à guerra. Além da guerra, havia outras situações que tornaram difícil a execução de alguns projectos, que iriam fazer muito bem a Angola.

ANGOP - E com o Comércio Externo, que podemos falar dessa sua pasta tão importante numa altura em que Angola não produzia nada?

IM - É isso mesmo. Produzíamos petróleo. Uma das coisas que fizemos foi iniciar a realização das Feiras Internacionais em Angola, para demonstrar o que podíamos produzir. Mostrámos, com a 2.ª Feira Internacional e com a empresa Panga-Panga, que podíamos construir casas de madeira fabricadas com a nossa madeira. Infelizmente, hoje estamos a transformar a madeira em toros que saem daqui, a rebentarem com uma das maiores riquezas que Angola tem e que está a ser delapidada. É preciso transformar e fazer da agricultura, como estamos a fazer, agora o sector que, de facto, deve ser a base, o sector-base de uma economia. Temos de voltar a exportar café; temos de voltar a exportar milho; temos de voltar a exportar aquilo que Angola tem grandes potenciais de fazer.

ANGOP - Hoje Angola tem essa vontade? Acredita que hoje está mais fácil?

IM - Pelo que posso observar, noto uma alteração do “mindset”, uma alteração na forma de olhar para Angola, uma definição mais clara daquilo que Angola deve ser. Penso que é possível. Pelo menos, uma agricultura mais produtiva para os angolanos, uma pesca mais produtiva, uma construção mais organizada. Mas vai ser necessária uma entrega séria por parte dos angolanos, em particular da nossa juventude.

A juventude tem de se formar para realizar, formar para dirigir. Vamos escolher os melhores dentre nós, para serem estes por meritocracia, a assumir, de facto, a direcção do país e construir o futuro que Angola merece e pode ter.

ANGOP - Em 1989, surgiu-lhe um novo desafio: dirigir o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD), como director-executivo. Como surge essa oportunidade e porquê Ismael Martins?  

IM - Angola era membro do BAD. Tornámo-nos membros por volta dos anos 80. Eu já tinha exercido funções a nível do próprio Banco, ministro das Finanças, governador do Banco e ministro do Comércio Externo. Portanto, estas funções eram eminentemente económicas. Dediquei-me bastante, durante a minha formação, à Economia de Desenvolvimento e trabalhei numa das instituições das Nações Unidas, a UNCTAD, que trata destes assuntos de Comércio e Desenvolvimento. Portanto, trazia luzes, trazia background, e assumir o BAD era perfeitamente possível.

ANGOP – No seu entender, Angola soube tirar partido da sua presença no BAD?

IM - Sim e não. Deixe-me dizer que Angola já vivia os problemas das dificuldades económicas, mas o pior chegou agora. Era preciso gerir bem, e a contribuição, o financiamento internacional que o BAD podia aportar a Angola, não foi suficientemente aproveitado. Fiz isso muito mais facilmente com outros países como Moçambique, Namíbia e Zimbabwe.

ANGOP - O que faltou para Angola tirar melhor proveito?

IM - Faltou-nos, sobretudo, uma visão diferente. Angola foi um país sempre muito cobiçado por muita gente, e algumas dessas pessoas não tinham interesse que Angola se saísse bem, que Angola se afirmasse. Refiro-me ao regime colonial e outros. A intenção deles era transformar Angola num país permanentemente dependente e não num país que pudesse desenvolver permanentemente os recursos que tem.

Um dos primeiros projectos de Pesca em Angola, financiado pelo BAD e o projecto de saúde para produzir medicamentos (ANGOMÉDICA), também financiado pelo BAD, falharam. Era uma empresa que nós cá tínhamos para produzir medicamentos e importar de forma racional os medicamentos de que precisávamos. Não se fez porque já havia outras forças que no seio da própria governação tornaram difícil a execução do projecto. E com o BAD fui uma força importante em vários outros países. Mas tirámos lições, e eu penso que estão repensadas outras funções para o BAD exercer aqui. É uma instituição credível, e hoje o que vamos buscar é apenas aquilo a que temos direito, como sócios; somos parte, somos parceiros deste grande projecto.

ANGOP - Mais um desafio na sua vida, e, desta feita, vai trabalhar para a SADC. É funcional a relação entre os Estados da SADC?

IM – Penso que sim. Os países da SADC não têm complementaridade naquilo que fazem, mas é uma das regiões que está vocacionada para ser das mais importantes do continente africano. E temos de ir beber mais da capacidade produtiva de países como a África do Sul, importando tecnologia e formando tecnicamente os nossos quadros.

ANGOP - Onde está o empecilho para o desenvolvimento?

IM - O empecilho principal residia na falta de uma mentalidade para dizer “eu sim sou capaz de produzir aquilo que tens e não sou apenas um ser que vive daquilo que traz dos outros”. É possível substituir importações, transformar a economia angolana.

O petróleo é importante para exportar, é importante para transformar e criar, mas é preciso não ficarmos com os olhos postos só no petróleo. Temos de olhar para as outras fontes.

ANGOP - Em 2001, quando nomeado, pelo então Presidente José Eduardo dos Santos, embaixador de Angola na ONU, disse que a sua missão seria “trabalhar para ajudar a ONU a desempenhar um papel decisivo em Angola na procura da paz, estabilidade e desenvolvimento”. Que leitura faz hoje desse discurso?

IM - Infelizmente, essa minha mensagem não foi suficientemente compreendida, não só por nós, Governo/MPLA, mas, sobretudo, pela oposição. Falei da necessidade de estabilidade, e a ONU tem como sua principal missão criar a paz, negociar a paz. E quando vou para as Nações Unidas, uma das minhas missões era que Angola deveria tornar-se membro do Conselho de Segurança. Por outro lado, quando chego às Nações Unidas, uma das acções que levo a cabo foi justamente tornar possível. Angola transformou-se num membro do Conselho de Segurança (CS). E no CS, um dos principais papéis que desempenhei foi a Constituição da Comissão para a Consolidação da Paz. Fomos eleitos. Não falhámos. Angola foi o país eleito com o maior número de membros. Foi um record, que o repetimos quando, mais tarde, voltámos a candidatar-nos. Isso diz ao mundo muito sobre Angola. Angola é um país olhado, respeitado. Cabe a nós, angolanos, fazermo-nos merecedores deste respeito.

ANGOP - Que avaliação podemos fazer deste período, em que fomos duas vezes eleitos membros não-permanentes do CS, do Conselho Económico-Social e do Conselho dos Direitos Humanos, bem como Primeiro-Presidente da Comissão para a Consolidação da Paz?

IM - A agenda da Consolidação da Paz era a agenda com que tudo começou, justamente em 2001-2002, e foi com o papel de Angola. Tínhamos o exemplo, éramos um país saído de uma guerra. E sair de uma guerra, construir a paz, e, por isso, mais uma vez, recorro-me ao meu discurso. A ONU tinha tudo para ser um parceiro firme para Angola, para fazermos de Angola um país estável, um país forte em África e um país a desenvolver-se. Durante o tempo em que estivemos nas Nações Unidas, procurámos trabalhar com os parceiros como o Conselho Económico Social e dos Direitos Humanos.

ANGOP - Capitalizámos suficientemente os ganhos?

IM - Considero que conseguimos capitalizar parte. Precisamos de ter mais quadros nossos, angolanos, engajados lá fora nas instituições e engajados internamente. Vejo, com uma certa satisfação, estes esforços que o Ministério das Relações Exteriores está a fazer para identificar serviços que se adeqúem aos quadros angolanos, mas angolanos de mérito. Não só a nível das ONU, mas também a nível de África. Tivemos, recentemente, a eleição para a Presidência da Comissão Económica para África Central, a CEAC, de um quadro angolano. E penso que podemos mais. A nossa presença nestas instituições é importante. Temos a nossa Josefa Sacko, a nível da União Africana, que é uma das comissárias.

ANGOP - Acha que é um dos ganhos de todo este nosso desenvolvimento?

IM - Angola é vista como um país respeitado, um país que soube desmentir aquilo que se pensa de nós em África, visto que o mundo não africano pensa que nós, africanos, somos incapazes. Podemos desmentir e podemos ombrear com eles nestas instituições e com muito valor.

ANGOP- Como representante de Angola na ONU, que momento a sua memória não apaga?

IM – Foi durante a nossa primeira presença no CS, quando se discute a situação da guerra no Iraque, que transformou o mundo todo. Esta invasão americana ao Iraque é um momento que ficou. Eu lembro-me de que tínhamos um grupo de países com quem estávamos relacionadas muito intimamente, que nos opúnhamos a esta guerra, e Angola foi parte desta posição. A invasão ao Iraque é um dos factores de desestabilização do mundo, pois transformou os países árabes em inimigos e provou que a solução passa pelo diálogo. E era isto que estávamos a propor. Connosco estavam nesta posição a França, a Alemanha e o Chile. E éramos tidos como um país que deveria, facilmente, alinhar com o lado mais fácil. Não o fizemos, e isso valeu-nos o respeito da Comunidade Internacional.

ANGOP – Conforme reiterado pelo Presidente João Lourenço, Angola defende a reforma da ONU, principalmente do seu CS, e alinha com a posição africana reflectida no “Consenso de Ezulwini”, que defende para África dois assentos permanentes, com todas as prerrogativas dos actuais membros permanentes, inclusive o direito de veto, e cinco assentos não-permanentes. Que comentário se lhe oferece fazer?  

IM – É uma posição correcta, é a posição de África, mas não é uma posição que África assume com toda a responsabilidade em termos de execução. Os sinais que são passados para os outros países-membros, às vezes, dão a impressão de que isto é apenas uma posição “com efeitos diplomáticos”, mas a posição da necessidade de termos no CS os membros que o “Consenso de Ezulwini” defende é perfeitamente correcta e passa, também, pelo  aumento do número de membros de países no CS. Daí é justo ter Angola nesta posição, dois membros permanentes. Este é um debate que é feito todos os anos a nível das Nações Unidas. É uma posição que permanece válida, mas é valida com o processo de reforma do sistema das Nações Unidas em curso. O actual secretário-geral, Guterres, é um dos principais apoiantes da ideia da necessidade de reformar as Nações Unidas. Penso também que sim. Com esta reforma, o “Consenso de Ezulwini é perfeitamente aplicável a África, mas vai ser necessário escolher bem. Que países permanentes africanos? Também já se pôs a ideia de uma permanência que pode ser negociada, para identificarmos uma presença que seja forte, através da União Africana.

ANGOP – Aos 80 anos, Ismael Martins é administrador não-executivo do Fundo Soberano. Assume esse cargo como um desfio ou como o repouso do guerreiro?

IM - De facto, está cumprido aquilo que me propunha cumprir, mas, enquanto tiver sopro, enquanto tiver uma cabeça que pense, olhos para observar o que se passa e poder ouvir para dialogar com os que estão, não darei repouso ao guerreiro.

O Fundo Soberano é uma instituição que foi, infelizmente, muito mal gerida. Foi transformada numa fonte de desvio de fundos, fonte de enriquecimento ilícito e era preciso corrigir isso.

A nível do Conselho de Administração actual, esta tarefa foi assumida, e eu tenho procurado dar o meu contributo para a atingirmos cabalmente. Por exemplo, os fundos que hoje foram investidos no PIIM saíram do Fundo Soberano, mas porque foi possível recuperar os fundos que estavam desviados. No Fundo Soberano, o que faço é sentar-me com os outros quadros e em equipa trabalhar para levantarmos a intuição.

ANGOP – Angola comemora 45 anos de independência num momento difícil da sua história. Com uma crise económica e financeira, uma pandemia e uma grande insatisfação da população devido às elevadas taxas de desemprego e de pobreza, bem como ao alto custo de vida. Como diplomata e negociador nato, o que pensa que poderia ajudar a atenuar a tensão social do momento?

IM – A tensão social do momento só pode ser atenuada com diálogo. Eu compreendo a insatisfação dos jovens. São decorridos 45 anos. O país esteve em guerra durante anos. Houve muitos investimentos que não foram realizados, mas houve também muita ganância. Devíamos ter os fundos necessários se, quando o petróleo estava a cerca de 110 dólares o barril, Angola tivesse feito um fundo soberano verdadeiro, para fazer face aos dias difíceis. Hoje não estaríamos perante as situações que vivemos.

A pandemia afectou todo o mundo, mas as dificuldades que temos, inclusive para comprar, importar material de biossegurança, porque não há recursos, recursos que o país tinha e se tivesse sido, finalmente, assumido por alguns dos elementos que andaram a desviar fundos daqui através de paraísos fiscais, iludindo as estruturas internas, se tivessem tomado a atitude patriótica de trazer para Angola e investir, para fazer que o país se recuperasse dos dias difíceis, seria melhor. Agora, temos de reconhecer que cometemos erros. Mas é, sim, possível responder de forma mais forte aos desafios que temos.

E temos a vantagem da juventude da nossa população e gostaria de que os jovens encarnassem aquilo que encarnei na minha juventude, de me formar e de me preparar, o melhor possível, para servir o meu próprio povo. Em vez de nos guerrearmos, vamos dialogar mais para encontrar soluções que sejam aceites por todos e saber punir seja quem for. A impunidade não deve mais vigorar. Devemos procurar reconhecer as nossas faltas, corrigi-las e fazer melhor.

Penso que a nossa saída da crise passa por apostar na juventude, a juventude já deu provas que pode fazer muito, mas tem que ser alimentada neste sonho. Temos um país bonito e com tudo; precisamos de distribuir melhor e formar melhor os nossos filhos, para que o país seja para todos.

ANGOP – Se pudesse voltar, o que mudaria na sua vida?

IM – Queria ter a oportunidade de viver mais dentro de Angola. Infelizmente, não deu, por razões de estudo primeiro e de trabalho, mais tarde. Eu saí de Angola antes do 4 de Fevereiro de 1961. Fui para o Congo.

Vou para as Nações Unidas em 1970, quando saio da Universidade de Oxford, onde estava a fazer pós-graduação.

Fui convidado para integrar a equipa que trabalhava na “Revolução Verde”, um novo processo de produção acelerada de sementes “miraculosas” para acabar com a fome no mundo. A minha missão era avaliar, em África, o impacto socioeconómico da introdução do que parecia ser a resposta. Cheguei à conclusão de que, na altura, as sementes híbridas eram a resposta, só que exigiam a introdução de adubos nos nossos solos virgens, solos orgânicos, que deveriam produzir bastante para a exportação, além de nos poderem alimentar. Espero que possamos aproveitar essa oportunidade no pós-pandemia.

Perfil

Ismael Abraão Gaspar Martins nasceu há 80 anos, em Luanda, de uma família metodista extensa (de 11 filhos), é viúvo e pai de quatro. Considera-se um sonhador que nunca quer parar.

Orgulha-se do pai, que o encaminhou para a vida, com os cultos e lições de domingo, preso pela PIDE (polícia política portuguesa) em 1959, no âmbito do chamado “Processo 50”, em pleno Domingo de Páscoa. Depois de liberto em 1969, desloca-se a Genebra, para ver o filho já como funcionário da ONU.

Foi a prisão do pai que o iniciou na luta pela mudança e lhe permitiu engajar-se seriamente no combate ao regime colonial.

Gosta de fazer amizades, de ler e de boa música angolana e cabo-verdiana, dança, mas é mais feliz convivendo; sente prazer em ajudar o próximo. Adorava cuidar da sua roupa pessoal, hábito que foi perdendo com os anos. Teve um casamento feliz, de 50 anos, que lhe deixou de herança três rapazes e uma menina, hoje todos adultos e bem encaminhados.





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