É hora de salvar a cultura – Álvaro Macieira

     Entrevistas           
  • Luanda     Domingo, 27 Junho De 2021    09h30  
Artista plástico Álvaro Macieira
Artista plástico Álvaro Macieira
Gaspar dos Santos

Luanda – O artista plástico angolano Álvaro Macieira alertou ao Executivo para a  necessidade da aplicação de medidas de apoio à classe artística, durante o contexto de pandemia, a fim de prevenir novos desempregos e salvar os fazedores de cultura.

Por:Venceslau Mateus

“Se não existir, para todos, uma política concreta de gestão desta crise, os contornos e resultados serão dramáticos e assustadores”, afirma o criador em entrevista à ANGOP, durante a qual se debruça sobre o actual momento das artes no país e da sua carreira.

Nesta conversa, conduzida pelo jornalista Venceslau Mateus, Álvaro Macieira diz não ter dúvidas de que o mercado do entretenimento levará tempo a reerguer-se do impacto negativo da Covid-19, e sugere alternativas aos criadores para poderem sobreviver.

Eis a íntegra da entrevista:

ANGOP: O mundo atravessa, há praticamente um ano, uma crise sanitária, económica e social sem precedentes, com repercussões graves em quase todos os sectores. Diante deste contexto de pandemia, como tem sido possível fazer cultura?

Álvaro Macieira (AM) - A nossa economia, de modo geral, está em crise. Esse (Covid-19) é um problema que afecta grande parte da humanidade, em luta pela sobrevivência, perante um quadro tão duro e dramático, agravado pela pandemia actual. Os resultados sociais, económicos e financeiros da nossa vida artística e cultural em Angola já vinham sendo difíceis de suportar nos últimos sete anos, mas agora, com esta situação, agravou-se de tal forma, que os resultados são dramáticos e visíveis.

Estamos a viver momentos muito duros, cujas consequências serão igualmente difíceis de superar, a curto prazo. Teremos um futuro sombrio na Cultura, e sobretudo entre os fazedores da arte, em geral, se não existir, para todos, uma política concreta de gestão desta crise, cujos contornos e resultados são, ou serão, dramáticos e assustadores. Nós, os artistas, cultuamos a alegria, este é o nosso papel e a nossa missão: insuflar esperança, palavras de encorajamento, poesia, literatura, luzes, cores e formas tridimensionais, dança e música. A crise pode trazer-nos a incerteza, a falta de recursos para comprar os remédios, a fome e afectar as nossas crianças, ou mesmo a indigência.

É preciso fazer alguma coisa para ultrapassar estes momentos, com mais solidariedade, inteligência e criatividade, para melhor distribuirmos os poucos recursos financeiros. Temos que ir ao encontro das necessidades vitais do artista e não deixar que as notícias tristes nos roubem a pouca alegria que resta. Esta é a verdadeira e inadiável hora de se abrir os cordões à bolsa para nos acudirem, como diz a sabedoria popular. Esta é a hora de resolver os problemas, porque as necessidades humanas, que não podem esperar, clamam em cada um de nós. É hora de agir, porque há fome. Então será a hora para abrir o celeiro e distribuir o trigo. Mas se não providenciamos, se não foi possível guardar nada, quando havia bonança, o que vamos fazer agora? Interrogo-me eu próprio. Temos que estar atentos ao que se passa com cada um dos nossos colegas da arte e saber do grau de ajuda que cada um de nós pode precisar.

ANGOP: Em termos concretos, por aquilo que vê em Angola e no Mundo, o que se deve fazer para aliviar o impacto da pandemia entre os fazedores de cultura?

AM - Primeiro é o pão para se comer. Depois é a arte. Foi o Bonga que cantou esse pensamento. Os mais velhos disseram, na sua ancestral sabedoria: saco vazio não fica de pé. O nosso saudoso Presidente, Agostinho Neto, poetizou e ensinou, dentre outras coisas, que devemos criar, criar amor com os olhos secos. Devemos ter esperança e trabalhar no futuro, sem perder o norte, o prumo, a orientação de onde nos vem a sapiência, para melhorarmos e apoiarmos o desempenho e a argúcia da nossa juventude nas artes. Os jovens artistas precisam de ser apoiados, mas apoiados mesmo. Auguro que esses jovens talentos da actualidade, os que estão a sair das escolas de arte, ou mesmo das oficinas dos consagrados e mestres, esses artistas que começam hoje o esforço e o labor para concretizarem os sonhos, se organizem convenientemente. Assim, não viverão as mesmas crises, dificuldades e consequências que nós, os artistas mais antigos, de todas as áreas da vida cultural nacional, vivemos nos dias penosos.

ANGOP: Identificados que estão os problemas, sente que é possível falar em futuro promissor da cultura angolana, em geral, e das artes plásticas, em particular?

AM - Temos que compreender que se há crise económica nacional e internacional e penúria financeira, para todos, sem distinção, teremos que encontrar soluções rápidas. Com o petróleo existia a bonança, que hoje quase nos tira a esperança. Vivemos uma incomensurável penúria financeira, que corroeu em poucos anos as nossas parcas poupanças. E agora instalou-se a pandemia, que nos amedronta e impede de trabalhar e produzir lives e alegres, estudar e viajar, ir ao cinema, ao teatro, ao futebol, aos espectáculos musicais e de danças, enfim, as exposições de arte e pintura. Tudo se agravou. Essa é uma das consequências da nossa própria visão, ou da nossa capacidade de prover e prever o que seria o futuro. Ao longo dos anos vivemos alegremente embalados no baloiço confortável do petróleo, agora temos que aprender com os erros e encontrar novas formas de produzir alimentos e riqueza, para sobrevivermos.

ANGOP: Que análise faz, actualmente, das artes plásticas angolanas?

AM - Como se pode constatar, o mercado cultural das artes está parado. Vai levar tempo para se reerguer, só depois da pandemia passar. Por agora, acho que é melhor deixar as artes e ir cultivar qualquer coisa para sobreviver.

ANGOP: Não estará a ser muito pessimista quando fala em deixar as artes e ir cultivar qualquer coisa, embora se reconheça o impacto negativo da Covid-19?

AM - Para responder a essa pergunta socorro-me de uma das frases mais bonitas e poéticas que conheço de um estadista africano de quem me lembro muitas vezes, o Presidente Samora Machel, de Moçambique: a Cultura é o Sol que nunca desce. Por isso, apelo para que não deixem que esse sol ardente de Angola se estinga, isto é, a nossa Cultura e as estrelas que fazem que esse astro continue a irradiar alegria e luz.

ANGOP: No seu caso específico, sendo um artista de renome, qual tem sido o impacto da pandemia na sua actividade diária. Consegue manter o seu mercado?

AM - Tinha o mercado alemão como fonte de abastecimento, mas agora as trocas comerciais estão paradas, a arte não é prioridade. Antes da pandemia, íamos viajando para comprar os materiais, mas mesmo assim faltavam-nos as divisas. Na realidade, tudo para pintar, desde tintas, pincéis, telas, espátulas e canetas, mesmo o papel, é importado. Vamos levar tempo para reerguermo-nos das cinzas, tal como uma Fénix, mas temos esperanças num futuro melhor. É o que nos resta.

ANGOP: Já agora, qual tem sido a fonte de inspiração para o seu trabalho?

AM - As minhas fontes de inspiração, para além do quotidiano, são a poesia, a literatura oral e escrita, as lendas, os contos, os provérbios, que são prenhes de filosofia e de conhecimentos extraordinários. Outras fontes são a arqueologia, as máscaras antigas, as esculturas e as danças tradicionais, a música, o meio geográfico, a flora, a fauna, a visita aos museus e aos lugares de memória, além da própria pintura antiga e contemporânea.

ANGOP: O que representam para si as artes plásticas, em concreto?

AM - As artes plásticas são para mim, ou melhor, a pintura é o oásis de todos os desertos, porque serve para divulgar o que de melhor existe em nós, a alma do artista. Gosto de pintar a esperança, a capacidade de sobrevivência, a natureza, os nossos mitos e as expressões únicas das tradições angolanas e africanas.

Por dentro

Álvaro Macieira é jornalista, escritor, artista plástico e consultor cultural. Nasceu a 13 de Maio de 1958, na vila de Sanza Pombo, na província do Uíge. Como jornalista, foi editor de Cultura na Agência Angola Press (ANGOP), onde começou em 1983, colaborou na Rádio Nacional de Angola, Televisão Pública de Angola e Tribuna Cultural da BBC – Londres, em Língua Portuguesa, a partir de Luanda.

Durante mais de 20 anos, dedicou-se à investigação dos vários aspectos da vida cultural angolana, percorrendo o país e tomando contacto com a realidade nacional.

O paradigma da sua inspiração pictórica é composto pela poesia, a filosofia dos provérbios, os contos, as histórias que ouviu na infância rural, o contacto com as artes e as tradições africanas, as viagens e os museus que tem visitado pelo mundo.

Com o pintor alemão Horst Poppe e o angolano Augusto Ferreira, fundou, em 2002, o grupo Conexão Cultural. Em oito anos de intercâmbio e diálogo artístico, ora na Alemanha, ora em Luanda, Álvaro Macieira e o pintor alemão fizeram várias exposições e pintura juntos (108 obras conjuntas de pequenas e grandes dimensões).

Três das suas obras estiveram expostas no Nord Art 2009, tida como a maior exposição colectiva de artes plásticas do mundo, realizada em Randsburg, norte da Alemanha.

A sua faceta de pintor foi revelada em 1998. As suas obras pitorescas estiveram em cidades como Paris e Moscovo. Com várias exposições individuais e colectivas, faz parte de colecções particulares em Portugal, Rússia, Brasil, França, Alemanha, Itália, Estados Unidos da América e Inglaterra. Tem mais de 20 anos dedicados à investigação de diferentes aspectos da vida cultural angolana.

É membro da União dos Escritores Angolanos (UEA) e da União Nacional de Artistas Plásticos (UNAP). Como escritor publicou três livros: “Castro Soromenho: Cinco Depoimentos”, “Cantos de Amor” e Séculos de Amor".





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