“É preciso preparar a juventude para valores patrióticos” – Amadeu Amorim

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  • Luanda     Domingo, 27 Junho De 2021    09h34  
Entrevista com Nacionalista, Amadeu Amorim
Entrevista com Nacionalista, Amadeu Amorim
Francisco Miúdo

Luanda – Amadeu Amorim é um nacionalista incontornável da história da luta de libertação nacional, conhecido pela sua activa participação em várias frentes políticas e culturais, com destaque para o envolvimento no conhecido "Processo dos 50", em 1959.

Desde cedo, o co-fundador do conjunto Ngola Ritmos bateu-se pela autodeterminação dos angolanos, ante a virilidade do regime colonial português, principalmente durante o consulado do antigo Presidente do Conselho de Ministros de Portugal, António de Oliveira Salazar.

Homem de fortes convicções e amante das artes, Amadeu Amorim é o convidado da ANGOP para abordar os meandros da concretização do Dia do Início da Luta Armada de Libertação Nacional (4 de Fevereiro de 1961) e dos ganhos dos angolanos subsequentes ao acto.

Nesta conversa, fala da sua participação no “Processo dos 50”, das vicissitudes que enfrentou antes e depois do 4 de Fevereiro de 1961, bem como do papel dos ex-gerrilheiros, e deixa claro que, na sua avaliação, apenas o MPLA e a FNLA foram, de facto, "movimentos de libertação".

O nacionalista fala, igualmente, dos caminhos da nova Angola e dos principais desafios que se colocam à Nação, defendendo uma forte aposta nos sectores da educação, saúde, agricultura e da indústria, para que o país se torne autossuficiente na produção alimentar.

Ao longo do diálogo, conduzido pelo jornalista João Silva, o entrevistado aborda, em concreto, a questão do combate à corrupção e ao nepotismo, chamando a atenção ao Estado para a necessidade da criação de leis mais duras e desencorajadoras do regionalismo, tribalismo e do racismo.

Na entrevista, alusiva aos 60 anos do início da luta armada de libertação nacional, pede "mão pesada" do Estado aos maus gestores públicos e aos cidadãos que relutam em obedecer as disposições legais. 

Amadeu Amorim diz acreditar que Angola ainda pode voltar a ter os níveis de produção de 1973, em que era referência mundial na exportação de café, sisal, banana e outros produtos, sublinhando que "se o povo tiver emprego e comida, os problemas acabam".

Eis a íntegra da entrevista:

ANGOP: Angola celebra, a 4 de Fevereiro, 60 anos do início da luta de libertação nacional. Que lembrança tem Amadeu Amorim deste importante período?

Amadeu Amorim (AA): Sou daqueles que foram afastados dos Coqueiros, onde habitava grande parte da burguesia angolana, para o então musseque da Ingombota. Na zona dos Coqueiros, onde está o campo de futebol, antigamente se chamava "meia laranja", havia grandes quintais onde ficavam os escravos, enquanto os grandes senhores estavam na parte mais acima da cidade. Estes escravos ficavam o mais perto possível do mar para serem transportados e vendidos. Os africanos foram sendo afastados para fora daquela zona, onde estava a burguesia portuguesa, primeiro para a Ingombota, depois para o Musseque Braga, Maculusso - a Viuvinha (onde está a Liga Nacional Africana), e daí para o Bairro Operário. Foi no Bairro Operário onde me concentrei, cresci e aprendi muito da angolanidade. A mistura da pequena burguesia angolana letrada com a população iletrada, principalmente no Bairro Operário, acabou por transmitir conhecimentos. Portanto, "saiu-lhes pela culatra" a ideia de juntar e controlar os angolanos. Todos acabámos por ir aprendendo com as grandes famílias, como os Van-Dúnem, os Vieira Dias e os Araujo. Estou lembrado de que a minha tia perguntava, em quimbundo": "oh menino, oh independência ya bana kiebi, kaxi"? (traduzido: o que é a independência, afinal?). Foi este Bairro Operário que nos transmitiu noções de independência, angolanidade, fraternidade, igualdade. No Bairro Operário, a gente foi vendo rusgas e o célebre chefe de posto, o Poeira, a rapar o cabelo aos africanos que não tinham pago o imposto, amarrados e sentados no chão, à espera que o camião os viesse carregar. (…) Hoje, fico triste, quando vejo este Bairro Operário todo podre, cheio de água podre, ruas cheias de lixo. Falo isso com um bocado de dor, porque foi no Bairro Operário onde nasceu o conjunto "Ngola Ritmos", onde se fizeram os primeiros panfletos para despertar o sentimento de nacionalista.

ANGOP: O que levou o Amadeu Amorim a aderir ao movimento libertador e qual foi, em concreto, a sua participação neste processo nacionalista?

AA – Foi, também, no Bairro Operário, que aderi ao MIA - Movimento para a Independência de Angola, através do Higino Aires. Era o Ilídio Machado que dirigia o MIA, depois que Viriato da Cruz se afastou para Portugal. Ele, Ilídio, orientou que se criassem grupos de acção para preparar a população. Através de panfletos, fomos formando a nossa própria população, já descrente de tudo e cansada, porque não acreditava que era possível lutar contra o grande e poderoso exército português.

Os panfletos faziam o trabalho de preparação das populações. Era bonito ouvir nas ruas mais próximas do Bairro Operário as pessoas perguntarem: “já leste o jornal de ontem?”. Os panfletos começaram a despertar e a criar movimento, a dizer que afinal não estávamos no fim, que era muito provável e possível que se fizesse a tal luta.

ANGOP - Em que circunstâncias veio a ser preso?

AA - Foram prender-me em casa, em 1959, porque não me tinham encontrado na então Câmara Municipal. Acusaram-me de apagar as luzes da cidade, para facilitar a matança de portugueses. Daí começou a grande tortura pela então Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE), criada a 22 de Outubro de 1945. Eu estava na cela nº 1, a de castigo. Interrogam-me e torturavam-me para tentar saber se havia ou não esta inclinação. A instrução de Ilídio Machado era a de preparação política da população. Foi na prisão onde conheci Agostinho Neto. Depois de tocar a campainha do portão, Agostinho Mendes de Carvalho, com quem partilhava a cela, subiu nos meus ombros, como eu era mais forte e mais novo, e por uma das janelas, viu entrar na cadeia Agostinho Neto, a quem conhecia bem.

Na cadeia, tentámos contactar Agostinho Neto, sem sucesso. Mandávamos fósforos queimados para ele escrever recomendações (…) e fazíamos código morse na torneira, mas Agostinho Neto não respondia, por ter experiência política e não ter certeza da origem das mensagens.

Um polícia, o 50, que fazia limpeza na cadeia, levava os recados. Quando alguém fosse levado a interrogatório, já se sabia o que responderia e outros estavam mais preparados para o interrogatório. De lembrar que aí nessa cadeia da PIDE, muitos, como o Carlos Higino Aires, tinham a mão presa num torno, com um alfinete enfiado na unha. Iam dando uns piparotes, o alfinete ia entrando. “Falas ou não falas, quem são os outros?” – interrogam-nos.  Mais um piparote e o alfinete ia entrando, você borrava-se, mijava-se ou então falava mesmo. Vi muitos a saírem do interrogatório com mãos e nádegas rebentadas de porrada e só andando com os cotovelos e joelhos, em direcção às suas salas de castigo. Tudo isso levou-me a ter uma participação cada vez mais forte e tentar ser um nacionalista digno de um angolano de verdade.

ANGOP - Para si, que significado tem o 4 de Fevereiro de 1961?

AA - O 4 de Fevereiro foi a continuação do “Processo dos 50”, a continuidade da clandestinidade. Estes elementos do 4 de Fevereiro, como clandestinos, foram atacar as cadeias para libertar os outros clandestinos presos. Há um pormenor que lhe vou contar. O Neves Bendinha foi à cadeia num dia de visita aos presos e esteve a falar com o velhote Pascoal de Carvalho sobre a possibilidade de sermos mandados para fora de Luanda. Acontece que, naquela altura, havia o boato de que a PIDE atirava os presos para o mar. Ele saiu a correr, não sei se foi avisar alguém, ou se foi isso que deu origem ao assalto à Casa de Reclusão. Os 60 anos do início da luta armada de libertação nacional devem ser um momento de reflexão sobre os sacrifícios consentidos e sobre o caminho que levamos para construirmos o amanhã, o futuro (…) da afirmação da angolanidade e da consolidação da reconciliação nacional.

Agora que fizemos 60 anos, precisamos de dizer à juventude quanto custou ganhar esta bandeira, com quantos paus foi feita esta luta. Cabe à Comunicação Social criar espaços para formação contínua da nossa juventude. As grandes potências não estão a dormir. Eles estão a procura de uma oportunidade para exigir o seu “Mobutu” no devido lugar. Como é que a Renamo tem dinheiro para pôr um exército de pé, para comprar armas, munições, roupas e comida? E em Cabo Delgado? Veja a República Democrática do Congo, onde aparece quase todos os dias um grupo de lutadores contra o Governo, com armas. Se não têm dinheiro, onde é que vão buscar armas? Alguém está a financiar-lhes. Nós não temos ainda, cá dentro, isso, mas um povo avisado sabe se defender, porque um povo inculto é levado para onde o outro o quiser. É preciso preparar a juventude para valores e evitar que esteja virada para a bebedeira, drogas, para a alienação, sem quer saber de nada. 

ANGOP - Qual é a relação que se faz entre o 4 de Fevereiro e o 15 de Março, ambos de 1961?

AA - São duas datas da luta, protagonizadas pelos dois grandes dois movimentos de libertação. Eu considero que só há dois movimentos de libertação nacional, o MPLA e a FNLA. A FNLA, lamentavelmente, hoje está como está, mas foi esta FNLA que fez aquele estrondo no dia 15 de Março e disse ao Mundo que os angolanos queriam a sua independência. Houve chacina, é verdade, mas ninguém vai a uma luta para ganhar prémios ou receber rebuçados. Eles mataram, mas nós também o fizemos. Este 15 de Março abriu os olhos a muita gente e levou a que muitos outros angolanos acreditassem que afinal era possível. O 4 de Fevereiro e o 15 de Março de 1961 foram marcos da luta de independência nacional, fora as ideologias. Os Estados Unidos ou a ex-URSS apoiavam uns e outros, não pelos nossos olhos bonitos, mas pelos seus interesses em Angola. As suas economias dependem muito de África.

ANGOP – Se bem percebemos, defende que só devem ser contados, de facto, dois movimentos de libertação nacional? Aonde fica a UNITA e porquê que a exclui?

AA - A UNITA atacou em 66 ou 67 o Exército Português, mas só depois de a OUA acusar a UNITA de estar a travar a passagem dos outros movimentos guerrilheiros. Pelo quanto sei, a UNITA não libertou nenhuma área do país no tempo colonial. A UNITA existe, respeito, mas é um movimento que lutou para a tomada do poder, mas não para a libertação do seu país, do seu povo do jugo colonial. Pode ser que esteja enganado, mas a minha percepção é essa.

ANGOP - Não há conhecimento efectivo dos que estiveram efectivamente no processo 50?

AA - Se perguntar ao meu filho, ele não sabe nada disso, ninguém o prepara. Logo dirá, oh pai, isso é coisa do passado. Os homens envolvidos no "Processo dos 50" foram Viriato da Cruz, Ilídio, Tomé Alves Machado, Higino Aires, André Franco de Sousa, Amadeu Amorim, Vicente Gomes, Carlos Alberto Van-Dúnem. Africano de Carvalho, Rui Rafael, Mário Soares de Campos, António Monteiro, Liceu Viera Dias, Barros, Lincaca, Holden Roberto, Catuto e outros, dos quais só quatro estão em vida.

ANGOP – Sente que já haja algum reconhecimento efectivo aos patriotas do “Processo dos 50”, ou seja, vivem com alguma dignidade?

AA - O que conta é o amor à minha terra, porque o partido não paga e não dá nada a ninguém. Você é do partido porque quer vestir a camisola. Cresci no MPLA e ainda continuo dentro do MPLA, porque penso que é um movimento claro, aberto e capaz de transmitir ideias da angolanidade, sem apelo a coisas. É este MPLA que penso que vale a pena segurar, porque ainda não vi os outros. É o partido que deve comandar este país.

ANGOP – Mas algumas vozes já começam a questionar se valeu o sacrifício…

AA - Devíamos voltar a ser escravos? Escravizados, a viver em sanzalas com a polícia a bater e a rapar a cabeça ou sei lá o quê? O que está mal é nosso. Fizemos mal, vamos corrigir. Dizer que não devia ter acontecido um 4 de Fevereiro, nem pensar. (…) Salazar não admitia sequer a hipótese de se falar da independência de Angola. Foi preciso passar a ideia de Agostinho Neto, de passar para a luta armada para defender a nossa opinião. Valeu o princípio de que "o homem só respeita o mais forte". E, então, o 4 de Fevereiro e o 15 de Março fizeram-nos respeitar. Os reis angolanos lutaram contra a colonização desde a ocupação de Angola, até 1941. Segundo o historiador francês René Telecier, os angolanos foram em África os que mais se revoltaram e lutaram contra a ocupação. Em 1959 surgiu o grito de liberdade ou morte com o "Processo dos 50". Este grande grito madrugador foi dar origem ao 4 de Fevereiro. As populações ganharam força, ganharam consciência, os panfletos já tinham feito anteriormente o seu trabalho. Em Dezembro de 1960, ocorreu o massacre de Icolo-e-Bengo, depois o da Baixa de Cassange, em Janeiro, o 4 de Fevereiro e em Março o 15 de Março, todos de 1961. Claro, não nos podemos esquecer da grande fuga de cerca de 100 estudantes da Casa do Império português para se juntarem à luta que se travava já sobre a liderança de Agostinho Neto. Há gente que saiu de Lisboa para Paris, dalí para Conacry e depois para o Congo.

ANGOP - Também passou por Portugal, pela Casa dos Estudantes do Império?

AA - Estive em 1968, mais ou menos. A memória já me atraiçoa. Saí do Tarrafal para Lisboa em prisão domiciliária. Só que cheguei a Lisboa e não tinha prisão nenhuma. Fiquei na rua, mas vigiado. Eu dormia num banco no Rossio. Tive ajuda do embarcadiço Mário Van-Dúnem, até que um irmão meu conseguiu mandar dinheiro e alugamos um sótão, em Lisboa. Um sótão muito frio, muito gelado. Foi aí que o mano Antonico, o António Monteiro, acabou por adoecer, meio pneumonia, meio de gripe, meio constipação, até que veio para Angola e acabou por falecer mais tarde. Era um estudante da Casa do Império que me convidou para ir visitar a Casa dos Estudantes do Império, para dizer algumas palavras. Diziam que estava aí um exemplo de jovem que lutava pela nossa independência. Vi à porta um aglomerado de gente e eu disse: “Comício aqui, com a polícia atrás de mim?”. Mas não entrei, porque percebi que aquilo ia dar cadeia a todo o mundo. Em Lisboa, apresentava-me à polícia, de início, de uma em uma semana, depois, de 15 em 15 dias. Acabaram por me mandar de regresso para Angola, porque começava a ser um perigo lá. Já em Luanda, também apresentava-me à polícia semanalmente, depois quinzenalmente, até que o tempo passou.

ANGOP – Fala-nos um pouco do papel dos Ngola Ritmos, em particular, e da música, em geral, no processo de libertação nacional. 

AA - Dois jovens, Liceu Vieira Dias e Nino, resolveram fundar um grupo musical, o Ngola Ritmos, isso na casa do Domingos Van-Dúnem, que era poeta, escritor, colunista, e com um salário na altura mais alto que a média dos jovens do tempo dele. Aos sábados, o Liceu e o Nino Dongo iam lá almoçar com ele e juntava um grupinho de outros jovens, como Mário de Araújo, Chico Machado, e tocavam. Claro, onde há música, há sempre bebida (...) e as ideias iam evoluindo e resolvem criar o conjunto Ngola Ritmos, na década de 50. A ideia cresceu e o grande Liceu Vieira Dias decidiu tornar o grupo maior e convidou-me para tocar bumbu, porque não tinham bateria, o Zé Maria para tocar viola a solo e o Euclides Fontes Pereira foi tocar dikanza. Quem introduziu a dikanza nos conjuntos foi o Ngola Ritmos. A dikanza era instrumento único e principal da rebita. Não havia rebita sem dikanza e é Euclides Fontes Pereira que dá grandiosidade ao instrumento, apresentando-se com dedais para o fazer. O primeiro que esteve a tocar dikanza no Ngola Ritmos foi o irmão do Domingos Van-Dúnem, o Antonino Van-Dúnem. A polícia andava a perseguir aquele conjunto, mas não tinha por onde pegar, porque as nossas canções não diziam directamente nada. Era o bicho que falava. "Quisanguela nguetu ni mazundu, osso wa dimuka, udia ngo lumoxi" (não queremos sociedade com sapos, os espertos só comem uma vez). Era uma canção do povo, mas a população sabia que o esperto almoça mas não janta. Outra, "Messene za tu longa kuegia o kutanga, tundé kia tuvalele, o kutanga nunca takumene, lelu ki tuandala ó kukalakala, a tu bingi kuegia kutanga, awa, ngodiondo, messene" (Mestre, venha ensinar-nos a ler. Desde que nascemos, nunca estivemos na escola, agora, que queremos trabalhar, obrigar-nos a saber ler”. Estas canções todas, que não estão agarradas, que a nossa emissora podia guardá-las e explicar a origem e o objectivo da canção. "Messene za tu longa kuegia o kutanga, e diz "xikameno boba, tondo mateka, an, t-o to, n-i-o, António". O António da música (era uma alusão a António de Oliveira Salazar, então presidente do Conselho de Ministro de Portugal de 1933 até 1968).

Eram mensagens indirectas e a polícia não conseguia prender a ninguém, apesar de ter tradutores e os informadores. Só mais tarde é que as canções mudavam. Quando dizia "João ngombe, kioló dibanga, muxia nzó ia moxi a zeka makuinhi, muxi yetu cala mutu ny inzó yé. João ngombi é uma corruptela de João Gomes, e traduzido o verso seria "João Gomes, é aqui na nossa terra que você se faz, porque na tua terra numa casa vivem dez, em Angola vocês têm casa mas eu não tenho". Então a canção revoltava o povo. Era assim que o Ngola Ritmos criava um paralelo na finalização. Cantava canções em quimbundo, que naquela altura era proibido. Não proibido que não se podia cantar, mas dizer que isso é coisa de gentios, você já tem bilhete de identidade. Às vezes, até, recebiam (confiscavam) o bilhete de identidade, apenas por estar com indígenas. Aquele célebre documento de Salazar em que separou indígenas e assimilados. E aí do assimilado que fosse visto a conviver com o indígena, era retirado o estatuto. Para seres assimilado e teres direito a bilhete de identidade, eles iam a sua casa ver se você tem mesa, dorme no chão, na esteira, se come com garfo e faca. Alguns tinham de fazer alguns trabalhos para serem assimilados. A nossa juventude não sabe destas peripécias todas. É preciso que alguém lhes diga. A televisão devia passar programas para ajudar os mais jovens a não ficar só na bebedeira. É bonito uma mulher beber cerveja e embebeda-se na rua? É preciso acabar com isso. Se não se fizer isso, a polícia actua. Eu sou daqueles que pensam que é bom preparar, ajudar, consciencializar, mas é preciso ter o chicote na mão, para dizer que se você não cumprir tem uma multa. Sou exemplo disso: quando da ordem de usar com o cinto no carro, eu não andava. Pagava a multa, de 10 kwanzas, de 50 kwanzas, mas quando a multa subiu, já passou a doer. A correlação é que é preciso ter o chicote de lado, senão a população também não vai. Não se pode vender bebidas a menores de 18 anos, vai lá controlar. Não vai acabar com a fuga e o roubo dos dinheiros se não for as empresas fiscalizar o gerente, administrador, aquele presidente (...). O PIIM é um caso de muito dinheiro. Quem não está habituado e de repente sente-se num monte de dinheiro, olhando aqui e alí, e como ninguém está a ver, passa algum para baixo. O momento faz o ladrão. Se não tem fiscalização, ele rouba mesmo. Epá, preciso de tomar um copo hoje, vou tirar aqui dez, depois já tira cem, 500, depois já tira milhões. É preciso fiscalização.

ANGOP - Como é que avalia o espaço que se dedica à cultura no país?

AA - Acho que a nossa cultura está a crescer. Precisamos de ser mais rápidos para levar as pessoas a olhar para cultura, não é só mostrar o rabo. Kuduro é um ritmo bonito, sim senhora, mas é preciso um pouco de respeito. E enquanto se deixar as coisas andarem, aquele João Bordão, que começou hoje, já quer se sentar ao lado de Elias Diakimuezo para cantar. Não, em qualquer outro país você sobe degrau da escada até chegar onde o Elias chegou.

ANGOP - Que relação faz entre cultura e nacionalismo?

AA - Um nacionalista tem de ter cultura, é obrigatório. Temos a nossa cultura original, ancestral, que temos de cuidar. O principal foco da nossa cultura devia ser educação, a preparação, quanto mais rápido melhor, para chegar onde os outros povos chegaram. A cultura tem que acelerar o seu passo. É verdade que precisamos de manter a nossa cultura tradicional, mas temos de ver bem na cultura nacional o que aproveitar e jogar fora. Não sou de opinião que se mantenha a cultura de corte do clítoris da mulher, da circuncisão com lâmina ou com o caco de garrafa. Manter a cultura da circuncisão, mas não em casa ou na mata, vai para o hospital. Alguns melhoramentos na nossa cultura que têm que ser feitos. É preciso indicar que nós, os dos anos 50 e 60, quem nos empurrou para a segunda fase de luta foram os poetas. A cultura tem de preparar o homem para o amanhã.

ANGOP - Diz-se que o colonialismo usou o tribalismo e o racismo como armas para dividir os angolanos. Até que ponto se conseguiu ultrapassar tais barreiras e consolidar a unidade nacional?

AA - Vale a pena mexer nesta questão. É bem verdade que o racismo, tribalismo e o regionalismo existem. Houve grupos políticos que se agarraram ao regionalismo e é preciso tomar cuidado com o regionalismo, porque quando chegar a tribalismo já ninguém se entenderá. É preciso ter muito cuidado com isso e não permitir que aconteça. Actualmente, o natural de uma província pode governar outra qualquer, se casam e arranjam famílias. Esta mescla vai acabando lentamente com o tribalismo, com racismo e até com o regionalismo. É preciso criar leis para desencorajar e julgar atitudes regionalistas, tribais e raciais.

ANGOP: Angola era dos maiores produtores mundiais de café, algodão, sisal e outros e ainda era auto-suficiente no domínio alimentar, até antes da independência. Como avalia os esforços do Governo para diversificar a economia?

AA - É necessária uma forte aposta na educação e na saúde, bem como na agricultura e na indústria para o país voltar aos níveis de 1973, em que havia excedentes e esteve no topo da produção mundial do café, o sisal, a banana e de outros produtos de exportação. Temos de continuar a trabalhar para diversificar a economia. Se o povo tiver emprego e comida, os problemas acabam. Os jovens não percebem que prejudicam ainda mais o país com manifestação em que se destrói o património público e privado, por falta de educação e preparação. É preciso reconstruir as infra-estruturas destruídas pela guerra e os bancos devem jogar o seu papel.

ANGOP - O Presidente elegeu o combate à corrupção, ao nepotismo e à impunidade como principais bandeiras da sua governação. Satisfaz-lhe o modo com o Chefe de Estado e a Justiça têm levado a cabo esta “cruzada”?

AA - É uma batalha nova. O PR está a fazer um grande trabalho, está a ganhar muitos inimigos, mas está no caminho certo. Os tribunais devem acompanhar a luta contra a corrupção, o nepotismo e a impunidade. Vamos ver se o PR consegue recuperar o dinheiro desviado, para ser aplicado no desenvolvimento do país. Tem de fazer parcerias fortes com países como os Estados Unidos da América, na busca de tecnologias necessárias ao desenvolvimento do país, e aproveitar agora com a chegada do Presidente Joe Biden ao poder.

ANGOP - Acredita ser um combate transparente, quando algumas opiniões consideram tratar-se de perseguição política?

AA - Não vemos indícios de perseguição política. O que ganharia o Presidente da República a perseguir indivíduos? O problema não é do PR, o problema é dos tribunais, que precisam de ser céleres no julgamento dos casos de corrupção. Apoio absolutamente o combate contra a corrupção e a impunidade, males que devem ser banidos da sociedade o mais rapidamente possível. 

ANGOP – Para terminarmos esta nossa conversa, como ex-desportista que foi, como avalia o desempenho do desporto nacional?

AA - O Atlético, onde joguei na década de 50, foi muito importante para a afirmação da angolanidade. Era avançado centro, veloz, porque fui corredor dos 100 metros. O nosso treinador de futebol era o Aníbal de Melo. Estou com raiva dos resultados desportivos. Temos de apostar no desporto escolar, que deu grandes jogadores ao Atlético, como o nosso Demósthenes de Almeida. Temos de ter massificação desportiva nos bairros, criar valores na juventude, se quisermos chegar a desportistas de alta competição. Acredito que daqui a 10 anos daremos saltos qualitativos, sem vergonha de mais nada. Devem ser organizados debates, concursos escolares em disciplinas como matemática.





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