Lei do Mecenato é letra morta – Carlos de Almeida

     Entrevistas           
  • Luanda     Domingo, 28 Abril De 2024    14h29  
Exposição de Livros (Arquivo)
Exposição de Livros (Arquivo)
Kinda Kyungo

Luanda - O escritor angolano José Carlos de Almeida considera que a Lei do Mecenato, actualmente vigente em Angola, “é letra morta, porque não é posta em prática”.

Por Antonica Bengui e Mateus Sorte, Jornalistas da ANGOP

 

Em entrevista à ANGOP por ocasião do Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor, assinalado a 23 de Abril, Carlos de Almeida defendeu, contudo, uma maior divulgação do diploma em causa, com vista à sua materialização.

No seu entender, uma maior disseminação da lei vai fazer com que os potenciais patrocinadores possam apoiar “ambiciosamente” os eventos culturais e desportivos.

Lamentou o facto de que, com a referida lei, acontece o mesmo que com muitas outras, que não passam de “imitações de leis estrangeiras”.

Durante a entrevista, o autor da obra “Ensaboado e Enxaguado” falou também dos grandes desafios da nova geração de escritores, com destaque para a sua superação e aproximação à qualidade dos clássicos da literatura angolana.

Para vencer tais desafios, aconselhou, a nova geração “deve estudar (mais) a gramática e ler mais, de modo a ter um vocabulário mais rico e deixar de usar de forma abusiva as palavras, repetindo-as desnecessariamente”.

Frisou que um bom redactor deve dominar os diversos aspectos linguísticos como as classes de palavras, os tipos de frases, a sintaxe e a análise literária, entre outros.

 

Eis a entrevista na íntegra:

 

ANGOP – No âmbito das comemorações do Dia Mundial do Livro, que se assinalou a 23 de Abril, que relação pode estabelecer entre a rica tradição oral de Angola e a literatura escrita.

José Carlos de Almeida (JCA) – A tradição oral é um meio relevante de transmissão de conhecimento de diversas matérias. Face à falta ou exiguidade de produção de obras escritas, a transmissão de factos através da oralidade era a principal prática. Contudo, ela se estende aos nossos dias, porque a transmissão oral é e continuará a ser uma alternativa às fontes de conhecimento de obras impressas e electrónicas.

Com o desenvolvimento da imprensa, as obras impressas (jornais e livros) passam a ser um luxo ou privilégio para os mais abastados, bem posicionados economicamente, e para as pessoas com capacidade de ler. E com o desenvolvimento das novas tecnologias, a leitura de textos ou obras escritas de fonte electrónica passou a ser mais uma fonte de leitura, conquanto o livro físico continua a ser o rei entre as fontes de leitura. 

Para terminar a resposta a essa pergunta, digo que, em Angola, devido à falta de investimento na produção do papel e a consequente falta ou escassez de obras escritas, a tradição oral continuará lado a lado com as obras escritas, particularmente, as obras literárias.

ANGOP – Que percurso podemos traçar para a literatura angolana?

JCA - A literatura angolana remonta ao primeiro quarto do século XX. Devido à luta de libertação nacional, os escritores angolanos de então estavam mais focados na redacção de obras com conteúdos revolucionários, embora escrevessem conteúdos líricos. As obras dos clássicos da literatura angolana coabitam com as dos jovens da literatura angolana. 

Na segunda década desse século, houve alguma estagnação da literatura angolana, talvez por causa da crise económica que Angola tem experimentado. Há muitos projectos de livros por se publicar. Todavia, os custos de produção de um livro são elevados. A razão é a falta de papel e a insuficiência de editoras, que prejudica a concorrência.

ANGOP – Podemos estabelecer aqui um paralelo à dicotomia educação/literatura?

JCA – De facto, há uma separação entre a educação e a literatura. No entanto, elas estão interligadas. Os diversos tipos de leitura, nomeadamente, silenciosa, vocálica e analítica, são levados em conta no processo de ensino-aprendizagem. Com efeito, as questões gramaticais (classes de palavras, tipos de frase, sintaxe e análise dos aspectos literários) são tratadas com base no uso de obras literárias. Quem escreve obras literárias leva em conta essas matérias que são aprendidas nos diversos níveis de ensino. Um bom redactor tem de aprender acentuação e pontuação, por exemplo.

ANGOP – Que desafios se colocam aos escritores de hoje, depois de precursores que deixaram um legado tão forte?

JCA – Os desafios são superar ou aproximar-se à qualidade dos clássicos da literatura angolana. Para isso, deverão estudar gramática e ler mais, de modo a terem um vocabulário mais rico. Desta forma, deixarão de usar abusadamente as palavras, repetindo-as desnecessariamente.

ANGOP – A literatura é elitista?

JCA – Sim, é! Mas podemos massificar a literatura, produzindo mais livros, criar o hábito de dar e receber livros. Além de, em entrevistas e conversas privadas, ter a curiosidade em relação aos derradeiros livros lidos pelos nossos interlocutores. 

Entretanto, se nos testes para os concursos académicos ou laborais houver uma ou duas perguntas sobre obras literárias, de autores predestinados, se isso ocorrer, haverá mais leitura e mais cultura geral relacionadas com a literatura: autores, editores, prefácio, descrição das fontes bibliográficas.

ANGOP – O que Angola precisa de fazer para massificar o hábito de leitura?

JCA – A resposta à pergunta anterior responde à sua pergunta. Gostava de acrescer a necessidade de criação de programas de rádio e de televisão sobre literatura. Felizmente, já temos um, o programa “Margens & Travessias”, da TV ZIMBO, que aborda essas matérias. Peço desculpa por mencionar o nome da estação. Fi-lo sem intenção de a publicitar.

ANGOP – Como fazer com que a literatura esteja mais perto do povo, se os livros são caríssimos?

JCA – A estratégia é apostar na produção de papel e na criação de mais editoras. O papel mais barato e a natural concorrência farão baixar os custos dos livros. Havendo mais livros, haverá mais leitura, se as escolas exigirem as obras interessantes, tendo em conta os seus respectivos conteúdos. A título de exemplo, precisamos de obras infantis. As pessoas têm de ter hábito de leitura, desde tenra idade, para, durante a maioridade, não terem dificuldades de ler. É importante dizer que a leitura está positivamente relacionada com a escrita e a oralidade. Através da leitura, pode-se ter conhecimento implícito da gramática.

ANGOP – Como podemos incentivar a juventude a abraçar a leitura?

JCA – A melhor forma é conceder-lhe pequenos livros de auto-ajuda. Podemos condicionar a oferta de um bem ou uma vantagem à leitura de um livro de poucas páginas. A inclusão de perguntas sobre literatura forçará os jovens a terem hábitos de leitura. E o pai de um/uma jovem perguntar à/ao namorada(o) da(o) sua/seu descendente se já foi a uma sessão de venda e assinatura de autógrafos de algum livro.

ANGOP – Como usar os influenciadores digitais e a própria Internet a favor da literatura?

JCA – Os influenciadores digitais podem exercer esse papel, se houver uma estratégia pública nesse sentido. No entanto, há alguns escritores e jovens amantes da literatura que exercem esse papel. Deviam ser apoiados pelos autores, pelas editoras, pelas livrarias e pelas associações ligadas à literatura. As poucas pessoas que, egoística ou altruisticamente, exercem actividades de interesse público deviam ser apoiadas. Esse apoio seria um incentivo aos demais.

ANGOP – O facto de termos uma tradição oral rica faz com que tenhamos uma literatura rica?

JCA – Não! A tradição oral pode dar azo ao desejo de escrever. Contudo, não gera capacidade redaccional. Importa dizer que a tradição oral pode ser inspiradora para alguém que tenha o hábito ou deseje escrever.

ANGOP – Os angolanos são bons leitores?

JCA - Como é que os angolanos vão ser bons leitores, se há pouca produção de fontes de leitura impressas. Há poucos livros, jornais e revistas. Por outro lado, em relação às revistas, muitos preferem ver as imagens que elas mostram. Nas redes sociais, os leitores e membros de grupos não têm vergonha de se queixar da prolixidade de alguns textos. Em relação aos livros, os leitores evitam obras volumosas.

ANGOP – E a Lei do Mecenato não funciona?

JCA – A Lei do Mecenato é letra morta. Alguém a imitou de um país, do mesmo modo que muitas outras são imitações de leis estrangeiras, normalmente, portuguesas. É letra morta porque não é posta em prática. Na hipótese de ela ser aplicada, não é notória. É importante que se divulgue a sua materialização, de modo a que os potenciais patrocinadores possam apoiar ambiciosamente os eventos culturais e desportivos.

ANGOP – Actualmente, como estamos em termos de editoras?

JCA – Infelizmente, temos muito poucas editoras e poucos revisores de obras escritas.

ANGOP – O aumento de editoras no mercado pode significar uma redução do preço do livro?

JCA – Quanto mais editoras mais baratos serão os livros. Isto tem a ver com a lei da concorrência – procura e oferta.

ANGOP – Que importância tem o livro para si?

JCA – O livro é uma obra indispensável. Melhorei a minha oralidade e capacidade redaccional através da leitura, particularmente, os livros. Aproveito o ensejo para dizer que sou o autor do livro “Teoria da Leitura”, que é uma obra interessante sobre o mundo da leitura. Define leitura e tipos de leitura; caracterização dos leitores; tipos de textos; autores; e espaços de leitura. Que se saiba, não há, no mundo, uma obra ambiciosa sobre o mundo vastíssimo da leitura. Tenho perguntado aos vendedores os nomes das partes dos livros. A maior parte deles, só sabe dizer “capa”. Não sabem as demais partes, como contracapa, badana, miolo.

O livro é muito importante pelas razões apontadas e reitero a declaração segundo a qual “O livro é o rei das fontes de leituras”. Nele podemos fazer anotações. Podemos folheá-lo e dobrar as suas páginas. Sentar-se numa esplanada ou no assento de um jardim é agradável e encanta quem valoriza a leitura. Lamento o facto de muitos não terem uma pequena biblioteca doméstica.

 

Perfil

 

José Carlos de Almeida, também conhecido por “Joseca Makiesse”, nasceu no distrito Urbano do Rangel, município de Luanda, no dia 12 de Março de 1968.

É pensador, jurista e escritor. Licenciado em Direito pela Universidade Autónoma de Lisboa, “Luís de Camões”, em Portugal, é autor de quatro livros - Ensaboado & Enxaguado, Amor ao Próximo, Teoria da Leitura e Poemas da Alma. 

É professor desde 1988, com passagens pelo ex-Colégio de D. Moisés, pela Escola Njinga Mbandi, pelo PUNIV de Luanda, pela Faculdade de Direito e Relações Internacionais da Universidade Lusíada de Angola e pela Universidade Metodista de Angola. Actualmente dedica-se à formação técnico-institucional.

O autor é político por vocação. Começou a ler sobre política na sua infância. Por isso, a sua vida será associada às actividades políticas. Enquanto cidadão, é um crítico da realidade política, económica e social no seu país.

Escreveu artigos de opinião nos jornais “A República”, “Novo Jornal”, e na revista “LUX”.

José Carlos de Almeida é amante de arquitectura, política, urbanismo, jornalismo, psicologia e desporto, bem como praticante de xadrez.

Como homem ligado à educação em sentido académico e comportamental, espera ser recordado como um educador, como uma pessoa de convicções e como um indivíduo que pretende continuar a ser uma influência positiva para os membros da sociedade a que pertence. AB/CPM/OHA/IZ





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