“Luanda tem solução” – Man Garra

     Entrevistas           
  • Luanda     Domingo, 27 Junho De 2021    09h31  
Man Garra, citadino de Luanda
Man Garra, citadino de Luanda
Tarcísio Vilela

Luanda – João Mateus Joaquim, ou, simplesmente, “Man Garra”, é um dos nomes que mais se afirma, nos últimos anos, como exímio contador das histórias e peripécias da cidade de Luanda, cujo aniversário se celebra nesta segunda-feira.

Por: Nelson Garcia Sita

O contador de histórias, que “invade” as casas da população aos sábados, no programa “A Voz dos Kotas”, da Rádio 5, é um dos convidados para falar sobre o ontem, hoje e o amanhã da capital do país, no âmbito do dossier da ANGOP em alusãoaos 445 anos de Luanda.

Neste diálogo, conduzido pelo jornalista Nelson Garcia Sita, Man Garra fala do crescimento da cidade, das grandes memórias da era colonial, em termos de infra-estruturas, do espírito cívico que se perdeu com o tempo e dos caminhos a seguir para desenvolver Luanda.

Na entrevista, a popular figura assume o desejo de um dia ser autarca, depõe sobre as razões que levaram à degradação da cidade capital e, com convicção, afirma: Luanda ainda tem solução.

Eis a íntegra da conversa:

ANGOP: Luanda completa hoje 445 anos, numa altura em que conhece grande densidade populacional e múltiplos desafios sociais, culturais e económicos. Quando olha para trás, de que mais sente falta na cidade que herdamos em 1975?

Man Garra:  Tenho muitas saudades de Luanda, porque, antes, quem mandava na nossa província era um fiscal da administração pública, de nome Santos Que Peixe, que tinha a missão de controlar mais de mil pessoas. O Santos Que Peixe era de nacionalidade Santomense, homem que tomava medidas duras aos indivíduos que deitasem água, lixo, e não só, nas ruas. Por outra, naquela altura, também existia o carro da Câmara Municipal de Luanda, que recolhia o lixo em todas as ruas, colocado numa lata de leite, para, depois,  ser transportado para o depósito de resíduos sólidos na zona do ex-Mercado do Roque Santeiro (Sambizanga). Era naquele local onde se deitava todo o lixo de Luanda. Uma vez o lixo já no depósito, era separado, em função da sua natureza. As latas iam para um lado, plásticos, para outro. O lixo era, depois, vendido a indústrias de reciclagem.

Outro elemento de saudade consiste no grande apoio que os transportes públicos prestavam à população. Com uma senha paga, o  cidadão tinha acesso a esses meios. Todos os autocarros estacionavam na Mutamba, onde cada passageiro apanhava o outro meio de transporte para ir ao seu destino final. Também o surgimento do bairro Cariango, actualmente município do Cazenga. Deixa recordações, porque era uma área habitada apenas por   brancos. As nossas velhas iam para ali em busca de algumas coisas para o sustento.

Sempre que as velhas fossem lá, diziam que iam ao Cuihango, vocábulo de origem Kimbundu, que significa capim. Como o branco não conseguia pronunciar devidamente, preferia dizer Cariango.

ANGOP: Qual era, na altura (era colonial), a matriz arquitectónica da capital angolana, lembra-se de algum padrão específico?

Man Garra: A referência de Luanda era a área dos Coqueiros, porque era uma área em que estavam implantadas várias empresas de referência, como a Afrimatic, que fabricava sabão, a indústria Mana, que concertava os frigoríficos, entre outras.

ANGOP:  Uma das marcas da cidade, ainda na era colonial, foi o surgimento dos musseques, dos “assimilados” e dos ditos gentios. Qual é, afinal, a história dos musseques?

Man Garra: A história do surgimento dos musseques começa nas Ingombotas, porque, naquele local, aglomeravam-se muitas pessoas. Algumas passavam por alí para comer alguma coisa e, depois, seguiam para baixa de Luanda, Mutamba, a fim de prosseguirem com as suas tarefas diárias.

ANGOP: Mas quais foram os primeiros musseques a surgir e como era a coabitação entre os “nativos” que daí saíam para ir trabalhar à cidade e os colonos?

Man Garra: O primeiro musseque que surge em Luanda é o Marçal. A relação entre os nativos e o colono era boa, porque eles prestavam todo o apoio para suprir as necessidades que o cidadão negro apresentava, para não falar mal deles. Apesar disso, estava uma escravidão de verdade. Naquela altura, existiam agentes de autoridade que ficavam na entrada e saída das ruas, para fazer controlo de quem estava mal apresentado. Outro pormenor, na época, só podia circular pela cidade quem fosse portador de um documento pessoal, caso contrário era detido.

ANGOP: Falou-nos do Marçal como o primeiro musseque a surgir. Onde se enquadra o Bairro Indígena, que, segundo relatos, terá sido construído para acolher os seguidores de Simão Toco, expulsos pelos belgas da cidade de Leopoldeville?

Man Garra:  O Bairro Indígena surge na zona da Cidadela, para acolher os homens negros assimilados. Quanto ao bairro fundado por Simão Toco, surge também nas imediações da Cidadela e foi denominado de Congolenses, actualmente o nome do mercado que se encontra no distrito urbano do Rangel. Outro pormenor é que eles (seguidores de Simão Toco) eram considerados revolucionários, por terem sido expulsos de Leopoldeville (actual República Democrática do Congo). Então, o colono aprovou uma ordem para que os mesmos se apresentassem todos os domingos, no período da manhã, no hastear da bandeira, e às 17h00, para a retirada da mesma. O Simão Toco implantou a sua igreja no Bloco 6, nos Congolenses, onde começou a realizar cultos e conseguiu evangelizar vários delinquentes que existiam em Luanda.

ANGOP: Luanda chegou a ser considerada uma das mais bonitas cidades de África. Do seu ponto de vista, que aspectos, em concreto, concorriam para que a capital tivesse essa aceitação internacional?

Man Garra: Luanda foi considerada uma das mais bonitas cidades de África, porque tinha tudo. A Polícia Internacional da Defesa do Estado (PIDE) conseguia controlar todos os bandidos de Luanda, “com visão ou sem visão”. Tu podias viver no município do Cazenga, mas eles tinham mecanismos próprios para localizar os indivíduos que procediam de forma negativa.

ANGOP: Havia, à época, alguns locais que não se podiam ignorar, quando se quisesse falar de Luanda, entre os quais o Baleizão. De que mais se lembra?

Man Garra: Sim, antigamente, o Baleizão tinha referência. Além deste local, o outro era a zona da Mutamba. A Mutamba era o ponto de concentração de todos os indivíduos que pretendiam chegar à baixa de Luanda. Uma das referências deste local é que os autocarros – o 24, que vinha do Cariango, e o 17 que fazia a rota da Terra Nova, entre outros – tinham alí o seu ponto de descarga do pessoal.

ANGOP: Naquela altura, a cidade contava com várias infra-estruturas, como unidades fabris e centros recreativos e culturais que hoje só ficaram na memória.  

Man Garra: Realmente, hoje muitos dos centros recreativos só ficaram nas nossas memórias, como o Ginásio do São Paulo, União de São Paulo, Maxinde, Centro Social de São Paulo, um grande ponto de referência, Maria das Querquenhas, local onde não tinhas hipóteses de entrar se o teu pai não tivesse nome. Quanto às unidades de fabris que também ficaram na memórias, destacam-se a Casa Americana, Robert Hudson, Ferrovia de Angola, Textang 1, Cipal e Macambira, esta última que acabou do nada.

ANGOP:  Quais eram as grandes fábricas e locais de diversão da época?

Man Garra: Neste momento, sinto lembranças dos centros recreativos Maxinde e Maria das Querquenhas, locais onde aproveitávamos para exibirmos os nossos toques de dança. Sinto saudade, também, da Textang 1 e da Macambira. Na primeira fábrica, faziam-se linhas de pesca, sapatos, sandálias e tecidos, produtos que ajudavam no sustento das famílias.

ANGOP:  Outro aspecto a realçar é o facto de Luanda ter sido uma cidade que “respirava” cultura e desporto. Recorda-nos um pouco do contexto e do formato dos bailes de carnaval do passado. Como era o Entrudo de então?

Man Garra: O carnaval do passado era uma actividade de luxo. Você, no período da manhã, deslocava-se até o serviço e de tarde estava a mascarar-se. Se fosse homem, poderia colocar um bigode, um calçado qualquer, um pano na cabeça e ir farrar, à noite. O grupo carnavalesco e um dos primeiros a surgir que foi o Kabocomeu, tinha grandes bailarinos, a destacar o Zangugu e o Mateus Esperto. Só o andar deles já demostrava passos de danças. Esses dois indivíduos foram viver no Sambizanga, com a finalidade de “cangar as damas”, ou seja, namorar as meninas.

ANGOP: Estas festas tinham duração de pelo menos três a quatro dias e contavam com o grande envolvimento da população. Qual a razão de haver tanta adesão?

Man Garra:  Primeiro, o carnaval que se organizava antigamente era para distrair o colono. As máscaras disfarçavam os rostos dos bailarinos e o colono não conseguia identifica-los, e isso possibilitava-lhes demonstrar várias representações. O carnaval tinha duração de quatro dias, começava na sexta e terminava na segunda-feira. A quarta-feira estava reservada para saborearmos a mabanga e a quiteta, provenientes da Ilha de Luanda, e servia, também, para controlar a ressaca, depois do Entrudo.

ANGOP:  De igual modo, o desporto era uma marca da cidade capital, que viu surgir grandes referências, em particular no futebol. Que marcas lhe deixaram os grandes luandenses na era colonial e no período entre 1975 e 1995?

Man Garra: Nós tínhamos futebol de verdade. A essas horas, estava a ir ver o espectaáculo de futebol, no campo do São Paulo. Você deixava de comer para ir assistir a uma partida de futebol. Eram grandes partidas, entre as equipas da Escola (do Zangado) e dos Perdidos, Calumbunze, Juba-Calumbunze, Juba-Escola. Para se poder assistir a um desses jogos, era necessário chegar momentos antes do jogo e fazer a marcação do lugar com um objecto.

Já no Cazenga, íamos assistir um dos grandes atletas de futebol, o Areia. Ele era pula (branco) e possuía também um restaurante. Após a partida, oferecia alimentação aos espectadores. Naquele tempo, as equipas de referência eram o Asa, Sporting de Luanda, Benfica, Maxinde, Sporting do Rangel, Ginásio, São Paulo Futebol Club e Maianga. Mas o primeiro club angolano que tinha muita força e deu o seu espectáculo de futebol, no campo do Maracana, no Brasil, foi o Progresso do Sambizanga. Aquando de uma partida de futebol que o Progresso do Sambizanga efectuou nesse estádio, o atleta desta equipa angolana, João Pascoal Neto “Joãozinho”, marcou o primeiro golo naquele campo, bem como entrou para as estatísticas do continente africano.

ANGOP: Luanda era estruturada, com transportes públicos, edifícios limpos, mas também saltava à vista a educação do povo. Havia mais espírito cívico?

Man Garra:  Havia mais espírito cívico, porque, naquela altura, o período da manhã estava dedicado ao trabalho, mas, de noite, cada um reservava o tempo para a escola, local onde aprendia várias regras de civismo ou etiqueta.

ANGOP: O que não era permitido fazer nas ruas, durante a vigência do colono, que se preservou depois da conquista da independência nacional?

Man Garra:  O colono não permitia que fossemos de chinelas à baixa de Luanda, de calções, uso de barba, cabelo e unhas compridas. Existiam indivíduos “camuflados”, cuja missão era fazer o controlo das conversas que as pessoas mantinham. Depois da independência, implementou-se uma coisa muito rigorosa, que é o cartão de identidade ou cartão de residência, que dava acesso às compras de bens nas lojas do povo.

ANGOP: Pelos seus relatos, dá para sentir a nostalgia que tem da cidade de Luanda de outrora. Afinal, a partir de que momento a cidade começou a perder a sua verdadeira identidade e, do seu ponto de vista, quais foram as razões?

Man Garra:  Luanda começou a perder a sua verdadeira identidade quando começou a receber cidadãos provenientes das outras províncias. Uma outra razão consiste em o cidadão tratar os documentos pessoais em qualquer município.

ANGOP: Como assim? Como justifica, por exemplo, que os musseques da era colonial tivessem água e luz e hoje, áreas que custaram muito mais verbas ao Estado, incluindo as centralidades, tenham problemas gritantes actualmente?

Man Garra: Primeiro, antigamente as residências eram inscritas e matriculadas nas administrações públicas. Este processo facilitava os fiscais no seu trabalho de entrega, aos moradores, dos talões para os pagamentos da água e energia.

ANGOP:  Quem olha para a capital hoje nota uma cidade cheia de problemas, com défices altos no fornecimento de água, luz, com construções anárquicas por todo o lado, lixo nas ruas, sem espaços de lazer para a prática de desporto, enfim, uma cidade que precisa de quase tudo. Do seu ponto de vista, Luanda tem solução?

Man Garra: Luanda tem solução. A solução de Luanda consiste em ter administrações municipais, distritais e comunais que funcionam de forma integrada. O controlo do lixo pode ser feito a partir da recolha porta-a-porta, pelas empresas seguradoras, que, depois, possam vender a instituições apropriadas, a fim de fazerem a sua reciclagem.

Quanto à melhoria do fornecimento da água potável, é necessário que o cidadão, antes de erguer a sua casa, deve fazer o pedido de legalização de construção, para evitar-se construções em zonas onde se encontram linhas de condutas deste precioso líquido.

ANGOP: Dito assim, parece tudo fácil. O que terá de ser feito para que Luanda conquiste, gradualmente e a todos os níveis o estatuto de capital digna desse nome?

Man Garra: Para Luanda adquirir o estatuto de capital digna desse nome, é necessário que o Governo Provincial possa “bater o pé” com muita força, nas várias questões de anarquia que surgem. Não pode permitir que o cidadão construa a sua residência em zonas fundiárias, nem permitir que, individualmente, faça a ligação da energia pública, água, entre outros serviços que são da responsabilidade do Estado.

ANGOP:  Acredita que as autarquias possam vir a ajudar a resolver esse mar de problemas e fazer de Luanda, novamente, referência em África?

Man Garra: As autarquias poderão sim resolver essa situação, porque o cidadão deverá possuir um cartão de residente, documento que poderá facilitar na resolução das várias preocupações apresentadas pelos moradores. Mas este cartão deverá ser tratado na sua zona de habitação e não como tem acontecido actualmente, em que um cidadão que vive no Cazenga vai tratar o Bilhete de Identidade (BI) na Maianga.

ANGOP: Já pensou em ser autarca?

Man Garra:  Não obstante, neste momento, atravessar uma situação de saúde pouco boa, ligada à minha fraca visão, poderia, muito bem, candidatar-me a autarca.

ANGOP: Se tivesse o poder político nas mãos, por onde começaria o processo de transformação de Luanda? Quais seriam as suas áreas prioritárias?

Man Garra: Era entrar em contacto com todos os empresários do município onde iria me candidatar, para, juntos, prestarmos um serviço condigno aos moradores. Neste caso, se fosse candidato do município do Cazenga, uma das minhas políticas seria a reabertura de todas as indústrias que alí se encontram encerradas, porque assim estaria a ajudar os munícipes na obtenção do emprego.

Nota biográfica 

Nome: João Mateus Joaquim “Man Garra”

Filhação: João Mateus Joaquim Júnior e Florinda Domingos Anastácio

Naturalidade e data de nascimento: Luanda, aos 30 de junho de 1947

Filhos: 12

Profissão: Técnico de Recursos Humanos

Habilidades: Futebol, Estatística, Mecânica, Electricidade

Equipa onde jogou: Progresso do Sambizanga

Cor preferida: Laranja

Filme mais marcante: Ali Baba e os 40 Ladrões

Livro que mais gosta: Os Sete Magníficos

Tempos livres: Ajudar os filhos a tratar dos serviços de casa

Contador de histórias nos programas desportivo e cultural “ A Voz dos Kotas”, da Rádio 5, e “Viagem ao Passado”, da Rádio Luanda





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