"O núcleo de Luanda já não é a Mutamba" - Dionísio Rocha

     Entrevistas           
  • Luanda     Domingo, 27 Junho De 2021    09h32  
Dionísio Rocha
Dionísio Rocha
Pedro Parente

Luanda – Dionísio Rocha chegou a Luanda nos anos 1956/57, altura em que deixou a sua terra natal, Benguela, para fixar-se no histórico bairro Marçal, um dos primeiros musseques da capital angolana.

Por: José Carlos Gomes

O músico cresceu nos arredores da zona de Kapoloboxi (cara para baixo), nome de um comerciante daquela área do Marçal, onde também moravam outros artistas de renome, como "Bonga" e Carlos Lamartine.

Foi em Kapoloboxi onde passou a infância, nos finais da década de 1950, e aprendeu a essência da cultura e tradição luandense.

É conhecido como um dos melhores contadores das histórias, memórias, dos hábitos e costumes da capital do país, que descreve, como poucos, ao detalhe.

Foi com este homem de cultura e artes,  actualmente em Portugal, que a ANGOP  conversou, no quadro do dossier sobre os 445 anos da cidade de Luanda.

Nesta conversa, mantida via telefone com o jornalista José Gomes, Dionísio Rocha conta detalhes interessantes sobre a "vida" de Luanda, principalmente na era colonial.

Fala da sua integração na cultura e tradição luandenses, dos nomes da época e da condição social dos povos nativos, vincando que, volvidos 445 anos, o núcleo da cidade já não é a Mutamba.

"Foi no Marçal onde compreendi o que era a cultura dos nossos musseques e vi, pela primeira vez, a dança do Maiado, feita na época com recurso a pantomimas", ou seja o mesmo que mímica, segundo afirma. 

Para começo de conversa, Dionísio Rocha fala de como era a cidade de Luanda nos anos 50/70 e como o cidadão angolano era encarado pelas autoridades portuguesas.

"Nos anos de 1970, a cidade era semelhante a uma concha que tinha como núcleo a Ilha de Luanda, a zona da Mutumba e a Petrangol. Espalhava-se como um semicírculo, terminando na Samba", diz, sublinhando que Luanda era habitada por menos de um milhão de habitantes.

Quanto à matriz arquitectónica, refere que não havia um padrão único. Na altura em que os portugueses deixaram a colónia, por exemplo, "a cidade Alta era formada por uma mistura de edifícios palacianos do século XV, com ruas calçadas".

Segundo o compositor da canção "Minha Cidade é Linda", mais abaixo, até aos Correios, havia construções mais modernas, com vestígios arquitectónicos do Hospital Maria-Pia (Josina Machel).

No outro extremo da cidade, precisa, havia os musseques, com casas construídas no areal, casebres de pau-a-pic, inicialmente cobertos de capim, mais tarde de chapas de zinco, telhados de argila. No fim, as coberturas passaram a ser de telhas.

"O movimento dos negros assimilados começa na Ingombota, o primeiro musseque da época, a seguir à Igreja do Carmo, subindo até ao Liceu Salvador Correia, agora Mutu-ya-Kevela. Eram vivendas grandes, construídas com material proveniente da Europa e América".

Já o Bungo, prossegue o compositor, começando pela zona das instalações do Jornal de Angola, era musseque com algumas vivendas e prédios em forma de arquitectura moderna para a época.

Segundo o entrevistado, este perímetro subia para a zona dos quartéis, a partir da actual Rua Comandante Gika, onde se encontra o Alvalade, que não foi construído com as receitas da produção do café, ao contrário do bairro situado em frente à Igreja Sagrada Família.

Dionísio Rocha diz que a zona urbana do Miramar tinha uma arquitetura de característica das Américas, Europa e da África do Sul, de alto padrão, até ao cemitério do Alto das Cruzes.

Ainda em relação aos musseques, onde não havia asfalto (eram bairros em zonas de areia), diz que era as zonas de maior densidade populacional, até 1975, estavam localizados na Maianga, Calemba, Prenda, Sambizanga, Marçal, Bairro Operário  e Bungo, depois da Igreja da Nazaré.

"Ainda na zona do Bungo, onde estão os Caminhos-de-Ferro de Luanda e o Porto de Luanda, na chamada ponta de Santa Isabel, existia a Fortaleza de São Pedro Penedo , depois transformada em cadeia para os nacionalistas", lembra o músico.

"Com o passar do tempo, começaram a ser construídas casas de adobes, mais sólidas e tijolos em barro, mas já no final dos anos 50 surgem as casas de madeira, cujos toros  eram transformados em madeira em  grandes serrações, com destaque para a Serração Bailundo, no Marçal", testemunha.

Conforme Dionísio Rocha, havia ainda os bairros indígenas, igualmente musseques com terrenos demarcados sob orientação do governo da província e bem urbanizados para facilitar a localização das residências, ruas com nomes e números .

"O primeiro bairro indígena de Luanda foi construído próximo do Bairro Operário. Situava-se na zona entre o Cine Miramar e o Sambizanga, onde passava uma linha férrea que percorria até o local onde se situa o actual Hospital Militar, ou Hospital da Caridade, só para negros. Esta linha férrea juntava-se, no Rio Seco, a um outro ramal para Malanje", esclarece o artista.

Entretanto, diz, foi construído um outro bairro indígena na Lagoa da Velha Filipa, na altura localizado onde está o actual Estádio Nacional da Cidadela, cuja extensão saía da Senado da Câmara até à Igreja do ex-São Domingos, onde eram alojados os assimilados e altos funcionários, bem como as famílias com certo nome, à época.

"Mais tarde, surgiram os primeiros blocos de andares para trabalhadores administrativos, depois as Bs e Cs, surgiu o Cine Ngola e terminava nos actuais prédios dos cubanos, onde existia a floresta do Rangel", explica, nos mínimos detalhes.

O contador de histórias e autor da canção "Caculinhas da Bola" recorda que, sempre que chovesse, a lagoa transbordava e inundava a região. "Depois da construção do Estádio Nacional da Cidadela, em 1974, houve a primeira chuva torrencial, que deixou tudo inundado novamente e notou-se o mau trabalho feito".

Para solucionar o problema, recorda que foi construída a vala da Senado da Câmara, a fim de escoar as águas da zona.

Noutro domínio, Dionísio Rocha refere que o centro da cidade de Luanda, antes da independência, era apenas para os colonos. "Os nativos eram descriminados, impedidos de frequentar a baixa de Luanda".

Na época colonial, lembra o artista, os bairros Marçal, Operário, Miramar e Prenda, os chamados musseques, eram as grandes referências da capital angolana.

Recorda que os angolanos estavam confinados sobretudo nos musseques, onde, por serem a maioria dos clientes dos comerciantes brancos, tinham uma relação próxima e mais cordial com estes.

"Mas, no centro da cidade, éramos  discriminados”, diz o entrevistado, que afirma ter apanhado muita sova das “mãos dos brancos", como conta um episídio que diz ter sido bastante marcante na sua vida.

"Eu e os meus amigos tínhamos o hábito de ir à praia, todos os domingos, para dar um mergulho junto à Marinha de Guerra, na Ilha de Luanda. Este local era muito frequentado pelos jovens do Bairro Operário e do Marçal, como os músicos Bonga, o grupo Mulemba Show e o Morgado. Num belo domingo, decidi ir à Floresta da Ilha, zona dominada pelos colonos, quando me apanharam a fazer praia, fui expulso a pontapés", revela Dionísio Rocha.

Quanto ao entretenimento, recorda que, nos musseques, os moradores criaram os seus próprios centros de rebita, onde  os músicos se sentiam à vontade.

Entre os locais de espectáculos de maior frequência, em termos de música nacional, Dionísio Rocha aponta o Marítimo da Ilha, Maria das Escrequenhas, os centros recreativos  Bota Fogo, Maxinde, Sapalo, na Ilha de Luanda, bairros Operário, Marçal e Sambizanga, respectivamente.

O contador de histórias fala também das grandes mudanças da cidade. "O núcleo já não é a Mutamba ou a Ilha de Luanda, e a dita concha se estendeu até às zonas dos Ramiros, Cacuaco e Viana, habitada por mais de sete milhões de habitantes".

Dionísio Rocha lamenta o facto de o crescimento da cidade não ter sido acompanhado de infra-estruturas de saneamento básico, principalmente nos bairros suburbanos.

"Os nossos técnicos e responsáveis não conseguiram acompanhar o crescimento da população vinda do interior para a capital do país, a partir de 1975, numa altura que tínhamos poucos quadros,  agravado com o conflito armado".





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