Sanguito revela: “Nunca tive gosto por instrumentos de sopro”

     Entrevistas           
  • Luanda     Quarta, 27 Abril De 2022    15h30  
Saxofonista Sanguito
Saxofonista Sanguito
Tarcisio Vilela-ANGOP

Luanda - O saxofonista Sanguito é a favor de maior divulgação da música angolana e da abertura de mais salas de espectáculo, para fazer crescer o consumo e valorizar o cancioneiro nacional, dentro e fora do país.

Por Vissolela Cunha -

Em entrevista à ANGOP, Sanguito lamenta a forma como as rádios e televisões de Angola tratam os seus músicos, muito distante da realidade de outros países que promovem os seus. Aponta como exemplos África do Sul, Cabo Verde, República Democrática do Congo e outros.

Considerado um dos maiores instrumentistas de Angola, Sanguito confessa: “Nunca tive gosto nenhum por instrumentos de sopro…nunca me identifiquei com eles…até frequentar o curso na Academia de Música e ter sido obrigado, pelos professores, ... e aqui estou, hoje, agarrado ao saxofone”.

Eis a entrevista na íntegra:

ANGOP - Sanguito, 45 anos depois da sua entrada no mundo da música, que balanço faz da sua folha de serviço?

Sanguito - É um balanço positivo, embora com muita turbulência, já que passei por inúmeros problemas na vida, tive muitas subidas; muitas descidas; muitos altos e baixos… contudo, acho que tem sido positivo, porque, no final de contas, posso fazer música para os nossos compatriotas angolanos e não só.

ANGOP - Em 45 anos de carreira, tem apenas 5 discos no mercado. Qual é a razão para tão pouca produção discográfica, tendo em conta os seus créditos no mercado?

Sanguito - Tudo isso tem a ver com o nosso passado, na altura, não tínhamos gravadoras, não tínhamos fábricas de disco, e só havia a Valentim de Carvalho que  parou depois de 1975.  E de lá para cá, surgiu o CD, a inovação do disco vinil para o CD. É a partir daí que começo  a gravar.

Gravo o primeiro tema em 97, já que, na altura, tínhamos muitas dificuldades, porque a mente não estava muito preparada e, também, por uma questão  de experiência.

ANGOP - Afinal, o que o levou a adoptar o saxofone como companheiro inseparável?

Sanguito - Olha, isso é uma incógnita, é um pouco difícil de explicar, porque me foco no saxofone a partir da Academia de Música, onde fui fazer  um curso de instrutor de música. Para dizer que, antes, o instrumento que eu mesmo gostava de tocar era a guitarra, que foi o meu primeiro instrumento. Durante a minha passagem pela Casa dos Rapazes, também recebi um instrumento mais ou menos parecido com este, que era uma requinta (clarinete). Nunca tive gosto nenhum por instrumentos de sopro e nem por palhetas, nunca me identifiquei com eles, identificava-me mais com o violino, piano, a guitarra  e, um pouco, pelo canto. No curso que  abrimos, na Academia de Música, fui conduzido para instrutor de música, havia uma necessidade de termos instrumentistas, de tudo um pouco, e como era o único, na altura, com uma certa experiência com instrumentos de palheta, fui obrigado, pelos professores cubanos, jugoslavos e russos, a dedicar-me, a sério, ao uso dos instrumentos de sopro.

Pensei que me fosse identificar com a guitarra, o piano ou o violino. Devo, no entanto, dizer que também estudei flauta, mas foi pelo saxofone que me apaixonei.

Gravei o primeiro disco em 97, a conselho do Carlos Vieira Dias, que me deu o primeiro impulso. Mas eu disse-lhe que não tinha dinheiro para gravar. Ele patrocinou o primeiro CD. Também tive um grande apoio do Bonga, do Boto Trindade,   da banda e de alguns músicos africanos, nomeadamente Betinho Feijó, Lanterna, Graça, Chemba e do pessoal que faz parte do Semba Master.

ANGOP - O que o levou a apostar na música?

Sanguito - Na verdade, nunca apostei, seriamente, na música. Na altura, como o meu padrinho era médico, queria muito que fizesse medicina. Fiz primeiro enfermagem. Tenho o curso médio de enfermagem, também fiz os cursos de rádio técnico e de serralharia. Depois da independência, como tinha o bichinho da música, fui fazendo a música e deixando cair o sonho do meu padrinho: que era fazer medicina.

Depois disso, disse mim mesmo: seja o que Deus quiser, vou fazer música. Aí surgiu a oportunidade de ir para a Academia, onde fiz a formação, e depois fui para Portugal, onde, também, fiz outras formações. Passei pelo Club de Jazz, pela música clássica e estou aqui, hoje, agarrado ao saxofone.

São coisas do destino, o que queria não aconteceu, aconteceu fazer música. Deus já tinha preparado esse caminho para mim.

ANGOP - Passou pelos Merengues, Semba Tropical, Afra Sound Star, entre outros, o que guarda desse percurso?

Sanguito - Aprendi muito. Na altura, também, tinha  formado um grupo. Estamos a falar do ano de 76. O grupo que chama-se “Mini Popular”, onde conheço o Pop Show. Convido-o para fazer parte do grupo, mas, infelizmente, o grupo não foi além. O país estava em guerra.

ANGOP – Sente-se realizado na música e na vida pessoal?       

Sanguito - No mundo da música, na verdade, não estou realizado, mas tenho feito algumas  coisas. Felizmente, consegui abrir o novo estúdio, um dos meus objectivos, e estou na luta para abrir um espaço, em Talatona. Estou à espera  de alguns apoios financeiros  para poder abrir. Depois, atendendo a Covid-19, é sabido que todos os fazedores de cultura  ficaram sem poder económico… estou a tentar reunir para concretizar mais um sonho, um dos meus projectos é precisamente fazer uma escola de música.

ANGOP - A música instrumental tem futuro no mercado angolano? Onde vai buscar inspiração para o trabalho que apresenta ao público?

Sanguito- Julgo que sim. É só uma questão  de dinâmica, e, se quisermos entrar em outros mercados é possível. Vou dar um exemplo porque, às  vezes, ando por África (Zâmbia, RDC, Namíbia, África do Sul, Botswana Moçambique, Cabo Verde, entre outros países) e encontramos apreciadores da nossa música. Uma das grandes experiências foi na Zâmbia, onde fiz um trabalho, por acaso, com um grupo nacional. Fizemos uma interacção com a música nacional deles.

Olha, o futuro de qualquer tipo de música depende dos fazedores. Temos que convencer o público e é isso que eu e o Nanuto temos feito.  Falando de música instrumental, em Angola, temos algumas e boas referências em termos do saxofone, percussão e guitarra. Em tempos idos, havia muita música instrumental, proporcionada por instrumentistas como Boto Trindade, um dos grandes músicos da praça angolana, dos Gueses, Ezequiel, Mário Fernandes, entre outros.

A música instrumental tem sempre o seu espaço, muitas vezes digo que, por exemplo, num filme a música do fundo é sempre instrumental, não temos música cantada. Se realmente quisermos que tenha futuro, teremos que ser persistentes, para incutir nas pessoas.  

ANGOP - Fruto do que se faz e do que se apresenta, actualmente, no mercado angolano, acha que temos ou estamos à altura de competir com outros mercados, principalmente africanos?

Sanguito - Há várias vertentes, uma vertente é a composição, a outra vertente é instrumentalizar os  temas cantados para o saxofone. Mas o que mais gosto é da composição. A minha mente não vai muito para a interpretação, vou fazendo, claro, mas o que mais gosto é da composição, de tal forma que  as minhas inspirações nascem muito do que já ouvi de outros, daquilo que vejo. Quando, por exemplo, estou num ambiente e vejo alguém triste, isso me envolve a fazer qualquer coisa.  Vamos supor que encontre um casal amigo  constantemente com  problemas, aquilo entra em mim e eu transporto os problemas deles para o meu silêncio, mas faço-o em melodia, depois tenho o costume de estar muito isolado, gosto de estar em minha casa isolado, debaixo das minhas árvores, ouvindo os passarinhos, buscando inspiração para compor, no silêncio do piar dos passarinhos.

ANGOP - Com a experiência adquirida ao longo da sua carreira artística, que conselho deixa a nova geração de músicos angolanos?

Sanguito - Não corram, estudem e sejam focados, olhem  para a música como cultura e não como um desporto  meramente para,   na desportiva, cantar e tal.

Produzem um tema, fazem sucesso  e pensam que já estão no topo.

Aconselho sempre à calma, serem persistentes e a estudarem muito, para que um dia possam deixar o seu nome na história de Angola.

ANGOP - Até que ponto estão, os músicos angolanos, preparados para ajudar na edificação de uma sociedade sã?

Sanguito - Penso que temos a faca e o queijo na mão. Muitas vezes digo que os músicos são como os religiosos. Os religiosos têm as ovelhas e nós temos seguidores, com os nossos seguidores temos que ter um comportamento exemplar, isento de coisas más, temos uma grande missão, ajudar a sociedade  a ter outra consciência, para, por exemplo, evitar que as nossas sociedades  caminhem de forma errada. O músico, tal como o político, é o espelho da sociedade.

ANGOP - Acredita que os músicos têm sido bons exemplos na construção de uma sociedade moralmente saudável?

Sanguito - Acredito absolutamente. Temos muitos seguidores  e então depende muito do músico. Penso que os músicos devem ter muita calma, porque somos o espelho  de uma sociedade.

ANGOP - Para quando o novo disco?

Sanguito - Estou a perspectivar o próximo disco para 2023. Um disco cuja produção estará a cargo de Nelo Paim. Estou a trabalhar com ele. É o produtor de grande parte  das músicas.

ANGOP - Mudando de assunto, o ano de 2020 marca, de forma muito negativa, a vida de todos, face às dificuldades impostas pela pandemia da Covid-19. Enquanto artista e criador, como viu esse cenário a nível mundial? O que fez ou gostaria de ter feito de forma diferente?

Sanguito - Foi um desastre tremendo  para os fazedores da cultura e não só, de tal forma que, nós que vivemos da música tivemos muitas dificuldades, na altura. Houve momentos em que nos perguntamos: será que escolhi a profissão correcta?  

Foi muito difícil, difícil mesmo, depois com a perda de muitos amigos e familiares. Tive a infelicidade de perder um grande amigo, o Manu Dibango, que era uma espécie de conselheiro. Sempre que ia a França era com ele que falava de música, dava-me conselhos.

ANGOP - O que fez ou gostaria de ter feito de forma  diferente?

Sanguito -Olha, muita coisa. O que fiz de bom, como já disse, foi o meu estúdio, que era o meu grande sonho, tirando a família, coisa mais preciosa do mundo. Depois da paz, reencontrei a minha mãe, 40 anos depois da nossa separação.

ANGOP - Como olha para o mercado musical em Angola?

Sanguito- O mercado musical em Angola, é péssimo, porque não temos salas próprias para bons espectáculos, não temos espaços, como anteriormente tínhamos; Os centros recreativos, onde podíamos exercitar  e viver bons momentos ao som da música angolana, estão voltados ao abandono.

Estamos a trabalhar a sorte, se não são as pessoas singulares que nos convidam, não quero falar de todos, mas no meu caso, se calhar, já não seria músico, porque não há mercado em Angola e com relação à venda de discos, normalmente,  faço poucas cópias.

No último  disco fiz apenas mil cópias, por razões financeiras.

ANGOP - Muito se fala sobre a qualidade da música angolana produzida actualmente, havendo quem considere que é descartável. Acha justa esta afirmação?

Sanguito - Quando é que se diz que a música é descartável!? Estamos a falar de uma música que não dura, uma música que fizemos agora, com letras imediatistas.

Infelizmente, temos artistas que produzem música cujas mensagens nada trazem de construtivo  e mal podemos pegar nessas mensagens para cantar.  

Tenho muito respeito pelo kuduro, segmento onde alguns artistas produzem com qualidade e que nos leva a tomar atenção, tendo em conta o alcance que tem no mundo, para evitar que qualquer dia o kuduro deixe de ser angolano.

ANGOP - O que falta para a música angolana tomar de assalto, de uma vez por todas, o mercado dos Palop e para se afirmar em África?

Sanguito - O que falta é a identidade, estamos sem identidade, se não tivermos identidade como nos vamos defender perante os africanos? É difícil, não vais entrar porque  acredito, também, que por sermos  mestiços, e quando digo povo mestiço é na música, porque bebemos do colono e depois da independência  começamos a beber do Brasil, das Caraíbas, músicas cubanas, das Antilhas, enfim, penso que vai ser muito difícil.

Perfil do Sanguito

De nome completo Manuel Bernardo Sangue, Sanguito é natural de Nambuangongo, província do Bengo, e é dos poucos angolanos que ganhou o respeito e admiração do público com o talento e a magia que de si emanam quando se propõe tocar o seu saxofone.

Ingressou no mundo artístico em 1977, a tocar guitarra, na Casa dos Rapazes, em Luanda, depois, frequentou o curso de instrutor na Academia de Música de Luanda, onde teve o primeiro contacto, aprendeu e se apaixonou pelo saxofone. Toca, igualmente, trompete e piano.

Integrou os grupos "Petro Clave", "Os Merengues", "Semba Tropical" e "Afra Sound Star".

Sanguito tem quatro discos no mercado: "Lentavida", “Mwagoleze”, “Kamba Diame” e “Passo-a-Passo”.

 

 





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