"A segurança é tarefa de todos" – General "Kamorteiro"

     Entrevistas           
  • Luanda     Domingo, 27 Junho De 2021    10h11  
Abreu Muengo "Kamorteiro" Chefe do Estado Maior General adjunto para área operacional e desenvolvimento das FAA
Abreu Muengo "Kamorteiro" Chefe do Estado Maior General adjunto para área operacional e desenvolvimento das FAA
Albero Julião

Luanda - Geraldo Abreu Muengo Ukwachitembo "Kamorteiro" tornou-se referência entre os angolanos quando, em 2002, assinou, da parte da UNITA, o Memorando que formalizou a conquista da paz e pôs fim a quase três décadas de guerra em Angola.

Por Falcão de Lucas

O General "Kamorteiro", que há duas décadas põe o seu conhecimento ao serviço das Forças Armadas Angolanas (FAA), foi um dos convidados da ANGOP para falar sobre a trajectória política e militar do país, no âmbito do Dossier 19 anos de paz efectiva.

Numa entrevista conduzida pelo jornalista Falcão de Lucas, o alto oficial das FAA faz uma incursão sobre os meandros da assinatura do Memorando de Entendimento Complementar  ao Protocolo de Lusaka, selados a 4 de Abril de 2002.

Nesta conversa, fala do que sentiu ao assinar o histórico Acordo de Paz, e debita vários subsídios sobre o processo de reconciliação nacional em curso, a modernização das Forças Armadas Angolanas e o contexto socioeconómico do país.

O General "Kamorteiro" encoraja os angolanos a estarem vigilantes e trabalharem para a manutenção da paz, sublinhando que ela (paz) está aí está, mas pode não ser perpétua. "Exige muito trabalho e vigilância", recomenda o oficial superior das FAA. 

Eis a entrevista na íntegra:

ANGOP - O que significou para o General a conquista da paz em Angola?

General "Kamorteiro" (GK) - É a segunda maior conquista do povo angolano. Como sabem, a Independência Nacional, a maior conquista de todas, comemorou-se sob o ribombar de canhões pelo país adentro. Faltou paz a essa grande conquista. Para mim, o significado de paz é sobretudo isso, porque de 2002 para cá as conquistas são imensuráveis e por isso limito-me a dizer que esta é uma conquista do povo angolano.

ANGOP - Ao assinar, pela UNITA, o Memorando Complementar ao Protocolo de Lusaka, depois de vários anos de guerra, sentiu o peso da responsabilidade?

GK- Naturalmente que senti. Fui indicado pela Comissão de Gestão do partido UNITA. Fi-lo em nome da UNITA, dos militares, da população e militantes da UNITA. Não obstante a própria direcção ou os membros da Comissão de Gestão terem estado presentes no acto de assinatura, senti não só a responsabilidade, mas também algum temor, porque fiz uma retrospectiva do Acordo de Alvor, que durou por aí dois anos (o processo descambou), Bicesse, uns dois anos (o processo descambou), Lusaka (...), enfim! Não só senti a responsabilidade, mas também algum temor.

ANGOP – Atendo ao contexto político e militar da época, essencialmente a morte de Jonas Savimbi, havia, da parte da Comissão Externa da UNITA, alguma dúvida em relação à lisura do Memorando de Paz do Luena?

 GK - Isto era natural, tínhamos perdido os nossos principais meios de comunicação, o telefone e a internet, em Janeiro. Daí em diante, a comunicação com o exterior era bastante exígua, quase impossível, mas tínhamos a certeza de que os membros da Comissão Externa, haviam, cedo ou tarde, de compreender o processo. Ninguém ficou de fora.

ANGOP – De lá para cá já se passaram 19 anos desde a assinatura dos acordos. Enquanto participe directo, qual a sua avaliação do processo de reconciliação dentro das Forças Armadas Angolanas (FAA), em particular, e no país, em geral?

GK - A guerra é a continuação da política por meios violentos. Quando os políticos decidem, normalmente os militares são os primeiros a dar passos de aproximação. São eles que enfrentam os maiores perigos, acções de alto risco e, quando os políticos decidem, eles não hesitam. Já havíamos visto isso em Bicesse. O cessar-fogo, em 1991, ocorreu a 15 de Maio e no dia seguinte tropas dos dois lados já estavam aos abraços. Para o caso do processo de paz de 2002, com o Memorando de Entendimento Complementar ao Protocolo de Lusaka, os militares desde a primeira hora deram sinais de que Angola estava mesmo em paz. Se no país há uma instituição em que a reconciliação é efectiva e está consolidada esta é as Forças Armadas Angolanas, onde já não há sectarismo. Nas Forças Armadas Angolanas a reconciliação é sólida. As FAA continuam a ser um barómetro da unidade e reconciliação nacional, ninguém pode negar. Essa é a minha perspectiva.

ANGOP - Do ponto de vista do desenvolvimento, como vê o processo de modernização e apetrechamento em curso nas Forças Armadas Angolanas?

GK - As Forças Armadas Angolanas têm vindo a dar passos importantes. Temos constantemente bolseiros militares nos países desenvolvidos, onde aprendem uma diversidade de ciências. A par disso, internamente também há formação de quadros militares. São conquistas importantes. Um dos exemplos é o Instituto Superior Técnico Militar (ISTM) que forma médicos, engenheiros em várias especialidades (mecânica, eletrotecnia, informática e construção). Existem bons resultados. Desde que o país foi assolado pela Covid-19, alguns desses quadros têm prestado um grande apoio ao país. Muitos são médicos das Forças Armadas Angolanas. Maioritariamente são jovens formados aqui em Angola. Estamos perante um processo de reestruturação que visa adaptar as FAA a um novo contexto.

ANGOP - Fez boa referência à formação de quadros militares nas FAA. Sendo  mestre em história, formado numa universidade angolana, tem alguma dúvida quanto à qualidade do ensino em Angola, fundamentalmente em tempo de paz?

GK - Não tenho dúvidas. Sei que o ensino tem vindo a melhorar bastante. Não fui só formado, mas também fui professor. Estive durante um ano como assistente na cadeira de História de Angola, na ex-Faculdade de Letras e Ciências Sociais. Há melhorias substanciais, no entanto podemos corrigir algumas lacunas.

ANGOP – E em relação ao actual contexto social e económico do país. Dezanove anos depois do alcance da paz, que Angola  projecta para os próximos tempos?

GK - Vimos que em 2008 o país passou por um momento quase de depressão, mas depois de uns poucos anos alcançou uma fase superavitária, que durou até ao segundo semestre de 2014. Aí bateu-nos a porta a queda do preço do petróleo no mercado internacional. É um problema do Mundo, porque as economias estão interligadas e interdependentes e não apenas de Angola. O país foi resistindo até que chegou a pandemia da Covid-19. No entanto, há bons indicadores. Optou-se pela diversificação da economia, partindo da agricultura. Nota-se que o Governo tomou medidas acertadas, o que está a encorajar muitos agricultores e empresários. A meu ver, os investidores internacionais não hesitarão em continuar a apostar em Angola, isso é visível. Pelas potencialidades que apresenta, Angola é um país que promete na agricultura e na indústria. Já se fala na extracção de cobre e ferro. A indústria transformadora marca os seus passos, é uma questão de tempo. As grandes potências também passaram por isso, se calhar no século XV (15). Ninguém tinha indústria nesse mundo, mas hoje o mundo é o que é. Temos que levar em conta que as transformações históricas levam mesmo tempo.

ANGOP - Estamos no mês de Abril, o mês da paz em Angola. Que palavras quer passar à sociedade, tendo em vista a preservação da paz?

GK - Apenas duas ou três palavras. O primeiro pressuposto é o patriotismo. É na pátria que cabem todos os angolanos, mas sem nenhum interesse individual e parcelar, como partidos políticos, organizações não-governamentais, etc, vai caber o interesse de todos os angolanos. É a pátria que nos ampara e pode congregar todos e não ao contrário. É daí que os angolanos devem pensar em coisas muito mais proveitosas, para que realmente tenhamos um país absolutamente forte, capaz de influenciar positivamente os acontecimentos nas regiões a que pertencemos, até porque também temos de ter cuidado com a instabilidade política em África, que começar a descer um pouco do Norte para a área do paralelo principal, a linha do Equador aqui tão próximo. Se falo em patriotismo, estou a falar também em coesão nacional e na situação internacional vigente. Entendo que o Mundo está absolutamente interconectado pelas economias, pela internet e política internacional. Precisamos de coesão nacional. Por vezes, há que sacrificar alguns interesses particulares e exaltar aquilo que nos une, porque tudo o que nos une fortalece-nos e fortalece também o nosso Estado.

ANGOP - Uma palavra para os efectivos das FAA e para a sociedade civil nesse mês da paz e reconciliação nacional.

GK - Penso que os cidadãos devem acreditar no processo de paz em curso no país. Dezanove anos depois, se alguém ainda tem dúvidas está enganado. Temos que estar vigilantes. A paz aí está mas pode não ser perpétua, exige muito trabalho e vigilância. Os cidadãos têm que saber diferenciar alguns fenómenos do Mundo actual. A partir do momento em que terminou a guerra fria, alguns conceitos sofreram alterações, evoluíram. Por exemplo, numa perspectiva tradicionalista, quando se falava em defesa e segurança as pessoas pensavam logo no político e militar, mas no momento este pensamento é absolutamente tradicionalista. Estamos perante uma perspectiva em que se fala em segurança ambiental, económica e alimentar. 

 Portanto, temos que ter essa visão para que possamos nos adaptar aos novos tempos. Também quero dizer com isso que o Mundo que emergiu depois de 11 de Setembro de 2000 já não é o mesmo do Século XX (20). A partir de 11 de Setembro, nota-se que o conceito de terrorismo sofre algumas alterações. O terrorismo é um fenómeno antigo, mas hoje tornou-se tão transnacional. Raramente pode ser doméstico. Depois intensificou-se também, neste século XXI (21), o tráfico de droga, seres humanos, enfim! Logo, temos de estar vigilantes. A segurança é tarefa de todos não só das FAA. Se trabalharmos unidos e olharmos para o nosso país uno e indivisível, a paz nunca nos escapará. A meu ver devemos levar em conta o trinómio Paz, Unidade e Reconciliação.

Perfil do General Geraldo Abreu Muengo Ukwachitembo "Kamorteiro"

Kamorteiro (pequeno morteiro, em língua nacional umbundo), nome de guerra atribuído por ser um dos mais habilidosos especialistas de artilharia terrestre das extintas FALA, fundamentalmente no manejo do Morteiro.

Desempenhou o cargo de responsável máximo do alto comando das extintas forças militares da UNITA, na altura chefe de Estado Maior destas forças, de 2000 a 2001.

Após a assinatura do Memorando de Entendimento Complementar ao Protocolo de Lusaka, em Luanda, já enquadrado nas Forças Armadas Angolanas, com cargo de chefe do Estado Maior General para Infra-estruturas, dedicou-se a terminar os seus estudos, tendo efectuado uma licenciatura em História.

Fez posteriormente o mestrado em História de Angola, no Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED).

Actualmente, exerce as funções de chefe de Estado Maior General adjunto para a Área Operacional e de Desenvolvimento das Forças Armadas Angolanas. Foi um dos co-signatários dos acordos de paz para Angola, rubricados a 4 de Abril de 2002 entre o Governo e a UNITA, ao lado do general Armando da Cruz Neto, então chefe do Estado Maior General das Forças Armadas Angolanas.





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