Língua é património cultural colectivo - Professor Muanza

     Cultura           
  • Luanda     Sexta, 30 Outubro De 2020    03h32  
Professor
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Pedro Parente

Luanda - Uma língua deve ser vista como parte do património cultural colectivo que se vai construindo e desconstruindo em função da dinâmica ditada por vários momentos da história humana, disse o docente universitário angolano Manuel Muanza.

Regente do Curso de Licenciatura em Ensino da Língua Portuguesa no Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED) de Luanda, Manuel Muanza respondia a questões colocadas pela Angop, numa entrevista cuja versão integral está estampada mais abaixo.

“As práticas da comunicação dos usuários (povos) em diversos contextos sociais, culturais, históricos e políticos, entre outros, conduzem a língua a mudanças estruturais e formais de modo natural.” – disse.

Na extensa e muito rica entrevista, o docente universitário reconhece que o sistema de ensino angolano tem “méritos e fraquezas”, ao mesmo tempo que defende que “o  ensino superior deverá, pura e simplesmente, abolir o regime de docente-colaborador”.

Para o académico, o docente em comissão de serviço deve suspender os préstimos à instituição de ensino, retomando-os mal cesse o mandato, facto que obriga a que as instituições do ensino superior devam apenas contar com o concurso de docentes “residentes”.

“O que se assiste está à vista de todos: governantes-docentes, por exemplo. E conhecemos os prejuízos que o regime de docente-colaborador causa ao ensino superior”, sublinha Manuel Muanza.

Interrogado sobre se, em defesa do rigor exigido, qual seria a sua opinião a propósito dos que defendem um “Português Angolano”, em vez de um “Português Europeu”, o entrevistado da Angop respondeu: 

“Se “Português Angolano” equivale à legitimação do erro que deriva do menor esforço, o melhor é abandonar esta intenção”.

Acompanhe a versão integral da entrevista:

Uma língua é um património social, não dependendo de caprichos de ninguém a sua alteração. Concorda com essa afirmação, que, aliás, é uma das bases da Ortografia Portuguesa de 1885?  

Nesta afirmação convincente está expressa a perspectiva segundo a qual uma língua deve ser vista como parte do património cultural colectivo que se vai construindo e desconstruindo em função da dinâmica ditada por vários momentos da história humana.

As práticas da comunicação dos usuários (povos) em diversos contextos sociais, culturais, históricos e políticos, entre outros, conduzem a língua a mudanças estruturais e formais de modo natural.

Por esta razão, os linguistas formulam a ideia de variações na língua. Tais variações podem ser geográficas (ou “diatópicas”, que podem acontecer na maneira de exprimir numa determinada região ou país), ou podem afectar a língua em função da relação desta com determinadas camadas da sociedade (variação diastrática, para os linguistas).

Mas, não tenhamos ilusão, tais variações precisam de ser objecto de registo e estudo e alguém as deve organizar. O registo assim visto pode dar lugar a instrumentos como é o caso do Acordo Ortográfico.

A ortografia é o sistema de escrita pela qual é representada a língua de um povo ou de uma nação. Defende, para Angola, a existência de uma ortografia própria da Língua Portuguesa, ou acha que devamos continuar vinculados aos acordos ortográficos existentes?  

O objectivo do Novo Acordo Ortográfico de 1990 é o de conseguir aproximar a língua escrita da língua falada. Por exemplo, quando o falante do português se exprime não pronuncia a consoante “C” na palavra “seleccionar”. Quer isto dizer que a consoante “C” é muda, porque não é dita. Por esta razão, o “C” está eliminado no Novo Acordo. E assim acontece com outras palavras, tais como “ação” (no lugar de “acção”), “adoção” (em vez de “adopção”) e “batismo” (em vez de “baptismo”).

Como se constata, o Novo Acordo, a meu ver, resolve o problema da grafia de certas palavras que suscitavam dúvidas em alguns usuários no momento de redigir o texto, especificamente as que se diziam (ou dizem) de uma maneira e se grafam (ou grafavam) de outra.

Entretanto, todo o fenómeno carrega vantagens e desvantagens. Por exemplo, causa certo desconforto cortar a consoante “C” no vocábulo “facto” (para “fato”). Neste caso, o Novo Acordo aligeira a dor do usuário e admite a chamada “dupla grafia”. Quer isto dizer que podemos usar tanto “fato” como “facto”. O mesmo se dá em relação a vários outros casos como “deceção” e “decepção”, ambos aceites na Nova Ortografia.

Posto isto, não há razão para desejar que alguém teorize uma escrita do português singularizada no caso de Angola. Não vejo fundamentos científicos.

Em Angola está a tornar-se recorrente o uso de expressões verbais inexistentes, como por exemplo “esteje” e “seje”, inclusivamente, por pessoas que não deviam fazê-lo. É de começar a considerar o reconhecimento das mesmas, no contexto de uma ortografia e fonética “à angolana”, ou simplesmente “lutar” para que sejam banidas?  

A resposta é “lutar para as banir”. Devemos ensinar o usuário a usar bem a língua. Erro é erro. Deve ser corrigido. Imagine, por exemplo, que alguém diga “kudibangala” em vez de “kudibangela” (em kimbundu), “lalepu” em vez de “lalipó”, “Ngevi” em vez de “Ngeve” (em umbundu), “nsami” em vez de “nsamu” (em kikongo). É erro e o caminho é corrigí-lo.

Por isso, nós, profissionais da Educação e os da Comunicação Social, devemos encontrar estratégias comuns para realizarmos a nossa missão de formar e informar. “Câmera” (para “Câmara”), “controle” (para “controlo”) não são utilizáveis no padrão do português em uso em Angola e Portugal. O falar errado das formais verbais tais como “seje”, “esteje” em vez das formas correctas “seja” e “esteja” deve ser objecto de correcção recorrendo a uma estratégia pedagógica que pode passar pela explicação em breves segundos como o faz bem uma estação de televisão (salvo erra, a TPA).

Neste mesmo âmbito, é recomendável considerar a sugestão de alguns linguistas para legitimar um “Português Angolano”?  

Se o “Português Angolano” consiste em legitimar o erro, não há fundamentos científicos aí. Por exemplo, “acarretar água” é o que está correcto. Desejar que se incorpore “cartar água” no léxico de um pretenso “Português Angolano” revela uma proposta inusitada e descabida de razão. Será infrutífero procurar aí uma sustentação semântica da proposta.

Uma visão racional e cientificamente sustentada tem a ver com a chamada “variedade” do português. Tal como dissemos já acima, a expressão falada varia em função da região, do estrato da população que a usa. Estas circunstâncias conduzem a determinadas diferenças na fala e à incorporação de vocábulos oriundos das línguas africanas. Por exemplo, observa-se uma tendência para a abertura generalizada de vogais no falar angolano, em oposição ao falar luso. Este e outro tipo de fenómeno ocorrem em qualquer língua e costumam ser elementos-chave para a descrição da identidade cultural. Verifica-se, também, a incorporação de vocábulos das línguas africanas no português, tais como “kamba”, “kota”. Mas, este fenómeno não debita subsídios para a defesa de um “Português Angolano”. Até porque muitos desses vocábulos já estão dicionarizados nas edições mais recentes impressas em Portugal.

Um dos aspectos do falar e do escrever angolano que me parece aceitável à incorporação na norma da língua tem a ver com a colocação de clíticos (me, te, se, lhe, nos, etc.). Brasil resolveu este problema, admitindo o uso facultativo de clíticos, embora a posição proclítica (exemplo: “me diga, cara”) seja a mais usada pelos usuários no Brasil em oposição à norma europeia (“diga-me” # “que me diga”).

A ciência recusa unanismo e privilegia a perspectiva crítica de abordagem dos problemas e fenómenos, de tal modo que muitos de nós nos colocamos do lado oposto do daqueles que formulam a visão, fundada ou não em suporte científico, segundo a qual um “Português de Angola” deverá ser instituído, convocando para o uso “normativo”, o que a norma europeia em vigor considera como erro ou o que a gramática institui como erro (“esteje”, “fala no Manuel que lhi mandei um presente”).  

Qual a sua opinião sobre o nosso sistema de ensino, a todos os níveis, particularmente da língua portuguesa, sabendo-se que os alunos e estudantes apresentam-se com muitas debilidades?  

O nosso sistema de ensino tem méritos e fraquezas. Se visitarmos as estatísticas, concluiremos que a maior parte dos quadros empregados nas áreas técnicas e humanísticas receberam formação no país.

Se recensearmos os quadros de referência, os chamados formadores de opinião e os que pertencem à elite de influência e à elite do poder, também concluiremos que a maioria teve formação no país.

Esta maneira de ver o fenómeno leva-nos a concluir que o sistema de ensino tem méritos, pelas seguintes razões: 1) os angolanos constituem a maioria esmagadora do corpo docente; 2) uma insignificante parte deste corpo de formadores alista expatriados.

Em relação à proficiência questionável de alguns alunos e de alguns professores em Língua Portuguesa, há que ter elementos e experiência para comentar o assunto. Deve-se ter muita cautela.

A nossa experiência (falo por mim) permite aconselhar uma abordagem que não deve visar identificar culpados. Devemos descrever o fenómeno e elaborar uma solução.

Sou regente do Curso de Licenciatura em Ensino da Língua Portuguesa no Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED) de Luanda.

Mesmo antes da existência dos outros ISCED (só existiu o então ISCED-mãe, no Lubango) nas províncias, a prática demonstra que os candidatos à graduação provenientes da rede de escolas de ensino médio da comunidade católica dos “Irmãos Maristas” têm, geralmente, competência irrepreensível na escrita e na expressão oral em português.

Nunca obtêm valores negativos nos testes de escrita e fala. Num passado recente (até por volta do início dos anos 2000), a rede do ex-Instituto Normal de Educação (INE) fornecia quadros médios competentes à mesma altura da rede Maristas. Hoje, as competências do produto fornecido por esta rede do ex-INE declinaram consideravelmente.

O próprio ISCED deve repensar (e já está a fazê-lo) em estratégias para melhorar a proficiência dos quadros que fornece aos subsistemas de ensino geral (e superior). Também aqui a qualidade deixa muito a desejar.

Então, onde está o problema?

A nosso ver, o problema está em três domínios: a gestão dos recursos humanos; a condução do processo de ensino-aprendizagem; a avaliação em todos os domínios da actividade dos subsistemas de ensino do país.

Concentremo-nos na formação de formadores para ensino do português e na preparação dos alunos futuros formadores. Em breve, eis o quadro:

Quanto à gestão dos recursos humanos.

Temos quadros formados em ensino do português no desemprego, mas, curiosamente, aqui mesmo em Luanda, temos, no ensino geral (e secundário), diplomados em Máquinas e Motores e outras áreas técnicas a ensinarem Português. Claro, sem o domínio dos conteúdos e da Metodologia e Didáctica específica. Deixo os detalhes para um foro adequado.

Falemos da condução do processo de ensino-aprendizagem. Esta questão mina as práticas pedagógicas. Por exemplo, ensina-se a gramática de modo mecânico sem ligação com a produção textual e a discussão do pensamento. Ora, há muito que a tendência metodológica consiste em partir do texto e da fala para a compreensão e discussão do modo como funcionam os elementos que estruturam a língua (funcionamento ou operacionalização da língua).

O ensino-aprendizagem a que se assiste, em geral, organiza-se exclusivamente na sala de aulas, limitando o processo a alguns meios pedagógicos: o papel (caderno, manual, quadro, giz). O conteúdo centra-se na leitura e interpretação, na indagação do que se memorizou e na reprodução no momento de responder a questionários de um enunciado de prova de avaliação. Nesse cenário, trata-se de um autêntico círculo vicioso que faz da disciplina de língua portuguesa um espantalho dos alunos, uma “coisa difícil”.  

Qual seria o caminho?

O caminho a seguir está em ligar o ensino-aprendizagem da língua à vida quotidiana do aluno. Uma aula cujo objectivo seja, por exemplo, explorar o vocabulário pode acontecer no campo de futebol da escola, com alunos em roda numa boa conversa animada pelo docente. Pode cantar-se aí “Muyimbu ya sabalu” na sua versão kimbundu e portuguesa, por exemplo. E rebenta a conversa sobre quem entendeu o conteúdo em kimbundu ou prefere a versão portuguesa. A discussão termina na aula seguinte, já em sala, onde o aluno traria vocábulos de kimbundu explicados em português e vice-versa.

Que resultados são esperados aqui? Ei-los: o aluno aprende novas palavras sem esforço e sem a voz militar e a mão punitiva do enunciado de prova (objectivos instrutivos). Sem a gramática seca. O aluno descobre a riqueza de mais uma língua e conhece o nome de um poeta, Mário de Andrade (objectivos educativos), compreende e lida com um elemento do património cultural nacional (adquire valores).

Outra crítica a fazer é a de que o português que se ensina não é o que se usa na prática social. Por exemplo, ninguém usa as formas “vós sois”, “vós tendes”. Mas, são as que se ensinam a um aluno que nunca as irá entender nem usar. A forma “você” não é suficientemente praticada no processo de ensino-aprendizagem. Daí a hesitação e dificuldade do aluno quando, em situação de comunicação livre, tem de usar “você fez”, “fui eu quem fez”, etc.

Portanto, faz falta o canto (que o docente deve usar), a recitação (que leva o docente e o aluno a contactar com bons textos da nossa literatura) e a dramatização (que liberta o aluno da inibição e do titubear). E só lendo bons textos é que se produz e se escreve um bom português (isto é, exprimir-se na fala e na escrita com um nível de linguagem adequado às habilitações escolares adquiridas).

Um problema-chave a que se deve encontrar solução tem a ver com o facto de a língua portuguesa ser vista como lavra exclusiva do docente da disciplina de português. Em todos os subsistemas privilegia-se o conteúdo. Por exemplo, um docente de Biologia não conduz os alunos a usarem bem o português no texto. Assim age também o de Psicologia. E isto se dá também na Universidade. O cidadão chega a receber o seu diploma de licenciatura sem ter exercitado a escrita de textos ao longo da formação, salvo raras ocasiões na disciplina de língua portuguesa. Em função disso, temos docentes que não sabem escrever um texto inteligível e outros nem sequer são capazes de organizar ideias num texto.

A avaliação em todos os domínios da actividade dos subsistemas de ensino do país tem lacunas inaceitáveis. Limitemo-nos ao desempenho do docente. Embora no ensino geral público já se tenha abolido a categoria de docente-colaborador, a verdade é que em alguns casos (senão mesmo em vários) a leccionação é feita à pressa, pois o mesmo docente deve “despachar” para ir a um colégio completar o salário.

Os factos estão à vista de todos: num momento em que se punha o dilema da remuneração dos docentes ao longo do estado de emergência imposto pela pandemia (Covid-19), entidades do Governo reconheceram que apenas uma ínfima parte de docentes estava sem remuneração garantida pela escola privada. Isto significa que um docente reparte o dia útil prestando serviço à escola pública e à escola privada, sem descanso. Em muitos casos, uma escola situa-se a uma larga distância, o que exige sacrifício fora do limite do esforço humano. Nestas condições, não se pode assegurar um processo de ensino-aprendizagem aceitável.

A agitação da vida urbana, em cidades sem redes de transporte organizado e disciplinado, sem meios de transporte de massa e rápidos, a deslocação de um docente em “regime de pula para aqui, pula para lá” consome várias horas e causa desordem psíquica, em muitos casos com consequências para os outros órgãos do corpo humano.

O resultado do desempenho do docente nas condições assim descritas não seria razoável se houvesse honestidade.

No ensino superior a situação é mais grave, sobretudo nas áreas das humanidades. O estatuto de colaborador permite usos e abusos inimagináveis. Por exemplo, um docente é gestor público. Além de guiar a equipa do organismo estatal, responde, como é óbvio, a comissões de trabalho e a outras chamadas da tutela. Se é assessor de um gabinete ministerial, já estamos a imaginar a carga de tarefas a que deve dar vazão. Outro docente pula da Assembleia Nacional, por ser deputado, ou do quartel, porque é militar, e dá umas aulas, e está feita a conta. Nada mais. E está ligado a uma ou mais disciplinas numa Universidade, Instituto ou Escola Superior (pública ou privada).

Não tem tempo para seleccionar, ordenar, planificar conteúdos, não dispõe de um calendário de atendimento (consultas marcadas pelos alunos). Jamais terá tempo para redigir uma ficha curricular e uma planificação para as 15 semanas lectivas (equivalem a um semestre). Sendo assim, o estudante não passa por uma avaliação diagnóstica, nem recebe o programa e o plano de conteúdos, nem mesmo a bibliografia mínima seleccionada antes ou no primeiro dia do reinício das aulas. Nestas condições, a garantia de uma formação fundada na combinação de métodos e estratégias de leccionação jamais estará assegurada. Assim, a avaliação contínua é pura miragem.

Qual é a solução?

Em ambos os casos, dever-se-á organizar um sistema nacional que tenha por finalidade disciplinar a mobilidade do docente em todos os subsistemas. Se um software detecta hoje a dupla efectividade a partir da base de dados do Mininf, então é possível afinar um sistema de controlo da mobilidade supervisionando o limite da carga horária semanal. Um ser humano que ensina para formar quadros deve ter margem suficiente para se dedicar à pesquisa, selecção, preparação e renovação de conteúdos na área da especialidade.

Quanto a nós, o ensino superior deverá pura e simplesmente abolir o regime de docente-colaborador. O docente em comissão de serviço suspenderia os préstimos à instituição de ensino, retomando-os mal cesse o mandato. Ensino superior deve ter docentes “residentes”. O que se assiste está à vista de todos: governantes-docentes, por exemplo. E conhecemos os prejuízos que o regime de docente-colaborador causa ao ensino superior.

Em defesa do rigor exigido, qual a sua opinião a propósito dos que vão defendendo um “Português Angolano”, em vez de um “Português Europeu”?  

Se “Português Angolano” equivale à legitimação do erro que deriva do menor esforço, o melhor é abandonar esta intenção.

Sendo adepto do surgimento de um “Português Angolano”, quanto tempo levaria a sua criação/formação, na sua opinião, e como seria desenvolvido todo o processo?  

Corrijo. Nunca me posicionei a favor de um “Português Angolano”. Quando alguém se expõe e diz que o angolano pratica abertura de vogais numa situação de comunicação similar em que um português a fecha não está a publicar nada de novo. Isto não é resultado de nenhuma investigação científica. É uma evidência identificável por todos os ouvidos atentos.

Os estudos científicos visam compreender fenómenos, explicá-los e promover o avanço na área. As afirmações valem nada mais do que afirmações.

Há uma exacerbação do nacionalismo na discussão (acientífica) sobre o falar angolano em língua portuguesa. Chega-se ao ponto de tentar arrastar as línguas africanas em presença no território angolano para esta discussão, com vista a justificar-se uma pretensa emergência de um “Português Angolano”. Há aí excesso de bantunização da discussão sob o argumento infundado de que português é uma língua imposta. Trata-se de um discurso deslocado do contexto.

O substrato umbundu que se traduz na nasalação do falante não é descoberta científica nenhuma. O substrato francês que interfere na fala do cidadão em contacto com a prática linguística na região Norte de Angola não autoriza ninguém a formular uma teoria de elaboração de um “Português Angolano”.

Finalmente, os erros reiterados na fala do português que se registam em Luanda, inclusive pela voz de referências da classe dita “alta e média”, jamais ditarão subsídios para forjar um “Português Angolano”. Se há erros, corrijámo-los.

Temos, em Angola, alguma instituição oficial e/ou organização da sociedade civil, que tem acompanhado, estudado e apresentado resultados sobre a dinâmica evolutiva da língua, como acontece, por exemplo, no Brasil (com a sua Academia de Letras)?  

Há algum avanço nos estudos da Língua Portuguesa e das línguas africanas nas instituições de ensino superior em Angola. Infelizmente, até aqui esta prática circunscreve-se a trabalhos destinados à obtenção de um título (Mestrado ou Doutoramento). Não se pode falar das chamadas “Unidades de Investigação e Desenvolvimento” dedicadas exclusivamente ao estudo da língua portuguesa. O surgimento da Cátedra da Língua Portuguesa adstrita à Universidade Católica é a primeira entidade científica neste domínio.

Faz falta no país uma rede de entidades públicas e privadas exclusivamente dedicadas a financiar a investigação científica em todas as áreas do conhecimento, a exemplo de fundos estatais ocidentais para investigação e fundações privadas ocidentais similares. Caso venham a existir, será necessário instituir um sistema de avaliação de projectos de investigação científica despido de compadrio e livre de visões e discursos preconcebidos sobre o outro. Quer isto dizer, um sistema de “avaliação por pares cega”, o qual consiste em submeter a um grupo de especialistas doutorados numa área os projectos a concurso, sem que esses mesmos avaliadores saibam quem são os autores dos projectos. Este procedimento assegura a isenção. Noto com nojo uma reiterada elaboração de representações do outro por parte de muitos que se supunha serem referências da sociedade. Procuram, no máximo, pintar quadros de incompetência para representar o outro, para assim justificar a razão por que não se afastam da corrida incessante para os cargos públicos. É uma mentalidade que levará tempo a destruir em Angola. O docente deve sentir-se bem onde está. O investigador deve aguçar a sua competência e visão crítica para apontar caminhos de desenvolvimento do país. O contrário equivale a travar a marcha da inovação.

Será que, a coberto de uma suposta “criação artística e literária”, pode-se aceitar o surgimento de termos absolutamente contrários às normas elementares da língua?

O poeta, o prosador, o dramaturgo e outros cultores do texto de ficção têm liberdade de “fabricar” seres de papel, seres fictícios que se exprimem numa determinada língua literária. Não temos aí materiais para “inventar” uma língua nova.

Entretanto, a liberdade do escritor autoriza-o, também, a apropriar-se do falar de entidades previamente existentes e colocar este falar na boca de seres de papel que ele forja na prosa.

O texto de ficção literária pode ser apenas pretexto para explicar um fenómeno desde que o foco do investigador seja o de demonstrar o modo como o escritor utiliza matéria extraída da boca de seres humanos historicamente existentes para vincar a ideia de que há um falar verificável num contexto, numa região, etc.

Seria, por isso, um disparate “fabricar” um “Português Angolano” a partir do discurso de protagonistas da narrativa de ficção. Já ouvi este desvario da voz de uma suposto académico que dizia tê-lo inscrito numa dissertação. Também alguém já proclamou que trabalhava para criar uma “língua angolana” a partir de uma aglutinação das línguas africanas em presença no território nacional. Tudo isso são alucinações.

Angola assinou o Acordo Ortográfico de 1990, mas ainda não o ratificou. Por solicitação do Ministério da Educação, foi redigido um Parecer sobre o referido Acordo, em Abril de 2010, que levanta algumas reservas. Concorda com o referido Parecer?  

O Estado Angolano, tal como qualquer Estado soberano, gere os negócios em função de contextos e de interesses (sociais, económicos, políticos, linguísticos e até étnicos). Reside nesse olhar a posição das autoridades angolanas. Recentemente, segui um governante angolano a declarar a disponibilidade de Angola para optar por ratificar o Acordo de 1990. Desconhecemos os fundamentos do tal discurso público.

Como afirmei acima, o Acordo Ortográfico oferece vantagens ao usuário, embora haja, também, desconforto na aplicação da grafia dupla ou única. Claro que existem consequências económicas na aplicação do Acordo, como seja a substituição dos manuais escolares para não atrapalhar o ensino-aprendizagem com materiais a circular sob a grafia anterior ao Acordo, etc. Será também necessário formar docentes, pois nem todos têm acesso ao texto do Novo Acordo, nem aos textos dos Acordos anteriores, nem mesmo ao historial do processo de que resultaram várias negociações entre Portugal e Brasil, mais tarde entre aqueles e os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) mais Timor Leste. As obras sobre estas matérias são volumosas e muito caras para o bolso de alguns docentes. As bibliotecas deixam muito a desejar.

O Parecer sobre o Acordo Ortográfico de 1990 aponta os mitos da uni(ci)dade, da simplificação pedagógica e da parcimónia como a filosofia geral da estruturação do referido Acordo. Na sua opinião, estes três mitos têm razão de ser, são sustentáveis?  

O “Parecer”, que está sobejamente publicado e impresso em livro, representa apenas uma visão sobre o Acordo Ortográfico como instrumento de harmonização do uso da língua escrita. Há outras posições contrárias a esse “Parecer”. Portanto, é pacífico entender que na ciência não há consumidores amorfos, pois ciência é lugar para o contraditório. Mas o “Parecer”, em última instância, passou a ser uma visão do Estado Angolano, salvo erro.

Pode falar da coexistência entre a língua portuguesa e as línguas nacionais em Angola?

Não havendo conflitos sociais, políticos e de disputas do território angolano devido às fricções derivadas do uso das línguas africanas de Angola e do português, a resposta é a de que coexistem ambos como meios de comunicação em vários contextos (escola, administração, cultos religiosos).

Simplifiquei a resposta, pois o caso dá muita margem para debate.

É avisado e recomendável voltar a fazer com que a língua portuguesa volte a ser uma das disciplinas nucleares do sistema de ensino?  

Não é esse o caminho, a meu ver. A elaboração de um quadro de taxonomia das disciplinas nada trará de novo ao sistema de educação e ensino. Do Jardim Infantil à Universidade, devem existir docentes preparados para simplificar o saber em todas as disciplinas. Nenhum domínio do conhecimento deve ser “bicho de sete cabeças” ou “espantalho” para quem aprende. Se o docente receber boa formação prática fundada numa sólida visão teórica, didáctica e metodológica, terá uma missão saudável e agradará aos alunos.

Por que razão a minha geração brincava com a Matemática e até apostávamos entre colegas para “tirar 20 pontos sobre 20”? Por que razão a minha geração pulava de alegria para a aula da língua com um pequeno poema bem memorizado para declamar no pátio onde decorriam as sessões? E por que razões ouvíamos rádio (a pilhas) expectando que na aula de qualquer disciplina o docente procuraria saber quais os assuntos de actualidade no país? E por que razão os meus estudantes, hoje, no ISCED, não se preocupam com provas de frequência e investem em dominar o argumento oral e escrito para destilar um discurso crítico nas discussões? A escola deve privilegiar a formação de mentes livres e críticas, meta só alcançável se os alunos amarem as disciplinas que estudam. No ISCED há um curso de Matemática, onde constato docentes angolanos a simplificarem o ensino-aprendizagem desta disciplina e eles estão a formar futuros professores, muito jovens, e que me dizem sempre: “Matemática, ah, brinco com ela”. Como vê, ainda é possível curar os males que temos.

Neste sentido, defende a introdução de exames obrigatórios de Língua Portuguesa na transição de níveis de ensino, por exemplo, do básico para o secundário?  

Este tipo de opções significa valorizar excessivamente uma disciplina em detrimento das restantes. Significa caucionar a visão segundo a qual a língua portuguesa é difícil. Não é a via. A solução está apontada na resposta anterior.

Será que as debilidades que se registam na fala e na grafia da Língua Portuguesa, em Angola, têm a ver apenas com os  alunos e professores, ou também com os programas e manuais?  

A análise deste fenómeno deve ser sistémica. A busca de culpados redunda em hostilidade evitável entre os actores do processo de ensino-aprendizagem.

O que acontece no sistema de educação e ensino no país representa apenas o reflexo da desordem que continua a imperar em muitas áreas dos vários sectores da governação. Há gestores que ainda não se deram conta do rumo que o país tenta tomar. E há uma data de funcionários que precisa de lições sobre o momento actual do país. Uma campanha nacional permanente deve ser instituída para mudar mentalidade e práticas nas instituições. Não basta direccionar a luta contra a corrupção para fundos desviados dos proventos do petróleo. De nada valerá se o cidadão não mudar a mentalidade. Uma revolução das mentes precisa-se e com urgência nacional. Temos um grande exemplo na nossa história: depois da independência, fez-se campanha massiva para a “formação do homem novo” e deu resultados visíveis.

Apesar das dificuldades que o país enfrenta nos domínios da produção de bens, da economia em geral e das finanças públicas, é possível haver organização nas instituições de ensino. No ensino geral, por exemplo, o Governo cometeu um erro, a meu ver, quando permitiu que o serviço de Inspecção Escolar continuasse (como ficou) sob a tutela do próprio Ministério da Educação. Deveria ir acoplado à Inspecção Geral do Estado. O inspector escolar reporta factos à própria instituição. E as teias que se construíram ao longo dos anos ligam os inspeccionados a quem no Gabinete recebe o relatório. Este último, por sinal, também está ligado aos inspeccionados. Nada feito.

Convém anotar ainda que a Inspecção da Educação não tem condições, nem materiais, nem humanos, para desempenhar a sua função. Um inspector usa os seus próprios recursos para trabalhar. Isto é uma aberração.

Para melhorar o ensino quer da língua, quer das restantes disciplinas, será preciso: a sedentarização de docentes, em todos os subsistemas, acompanhada da criação de condições para uma remuneração digna; abolição do regime de colaboração (privilegiando o estatuto de “Professor Convidado”, “Conferencista”, etc., no ensino superior, com restrições no acesso a esta em condição); uma base de dados num sistema inteligente para disciplinar a mobilidade limitada sob condições controladas em todos os subsistemas de ensino nacional.

Mas, não nos esqueçamos de que tudo isto tem a ver com as condições de trabalho nas instituições e com a melhoria do sistema de transporte público de massas, rápido, seguro e digno.

Nota  Biográfica

Manuel Muanza é Professor Associado colocado no Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED) de Luanda e regente do Curso de Licenciatura em Ensino da Língua Portuguesa.

Obteve o Doutoramento em Literatura pela Universidade de Évora (Portugal), o Mestrado em Estudos Africanos pela Universidade do Porto (Portugal) e a Licenciatura em Ensino da Língua Portuguesa pela Universidade Agostinho Neto (Angola).

Exerceu jornalismo, iniciando em regime eventual na Angop, tendo obtido a graduação no ex-Karl Marx-Makarenko. Foi repórter no Jornal de Angola, correspondente da Agência France-Presse (AFP) e editor-formador na Rádio Ecclésia.

Praticou política, militando numa organização juvenil partidária, tendo também sido activo em organizações cívicas angolanas (SJA, MISA) e como formador de opinião sobre governação em África para estações de rádio.





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