Prática do “Tchingongo” tende a desaparecer no Bié

     Sociedade           
  • Bié     Segunda, 01 Janeiro De 2024    07h00  

Cuito – Com auxílio de batuques e azagaias, vários grupos de adultos e até crianças, por altura da passagem de ano, passam de casa em casa, recolhendo benesses para saudar a chegada do novo ano, uma prática que vem dos anos 70, mas que tende a desaparecer nos dias de hoje.

Denominado “Tchingongo”  (língua umbundu, em português significa unidade, prosperidade), este ritual constitui-se naquilo que são hoje as festas de fim-de-ano “réiveillon”, mas de forma tradicional, praticado, sobretudo, nas aldeias da província do Bié, onde todo produto recolhido é cozinhado de forma colectiva e consumido por todos.

A partir das 0h00 do dia 1 de Janeiro, os grupos pedem, à comunidade, comida, bebidas, dinheiro e outros bens, através de cantos e danças, e, numa sentada, todos festejam assim o ano novo, uma prática que se estendeu até às cidades.  

Esta cerimónia vem desaparecendo com o tempo, por causa, entre outros factores, segundo alguns depoimentos, da perda de valores e da delinquência.   

Ainda assim, embora de forma tímida, esta prática vai acontecendo em alguns bairros periféricos desta cidade e não só.

De acordo com o regedor adjunto do Cuito, Cornélio Camoli, as pessoas agora sentem-se inibidas de sair às ruas, por causa da delinquência que se instalou fundamentalmente nas cidades. 

“Hoje em dia, quando as crianças saem de noite às ruas são assaltadas e até mesmo violentadas”- argumentou, frisando que a realidade está a desmotivar sobremaneira as pessoas de continuarem com esta prática, que considera uma cultura desse povo. 

Com 78 anos de idade, o regedor contou que também já participou em vários grupos, sobretudo de família, que anualmente faziam o Tchingongo na comuna da Chicala, sua terra natal. 

Disse que esteve envolvido nestas actividades até aos 26 anos de idade, altura em que viu-se obrigado a ingressar à tropa, porém, sente alguma saudade daquela época, lamentando o desinteresse da nova geração. 

Fez saber que os bens recolhidos as vezes serviam para festejar durante três dias e ainda sobrava algo para repartir entre os participantes.

O soba defendeu a renovação da prática, por considerar bonita, como forma de resgatar os valores culturais do povo Ovimbundu. 

Por isso, apelou à juventude a trabalhar mais no sentido de resgatar os hábitos e costumes da região, buscando experiências aos mais velhos, de forma a manter viva a tradição deste povo. 

Por sua vez, Victor Luís Soares, de 35 anos, admitiu já ter participado do Tchingongo, até aos 18 anos, tendo sublinhado que, na época, os grupos constituídos de amigos juntavam-se só num local, no bairro Catraio, arredores da cidade do Cuito, em todos os dias 31 de Dezembro, para esperar a hora zero para dar início às actividades. 

O jovem lamentou, igualmente, o facto de a prática estar a desaparecer, pois, entende ser uma “festa tradicional” que deve ser incutida de geração em geração. 

Entretanto, disse, por outro lado, que a situação económica que se vive no país deixa as pessoas um pouco cépticas em continuar a oferecer bens diversos, sobretudo alimentos, bebidas até mesmo dinheiro, factores que tem baixado, por parte, os níveis de solidariedade entre as pessoas. 

Contou que aprendeu a partilhar o pouco por intermédio desta actividade, por isso, defendeu que se deve continuar a estimular a prática no seio das crianças, para, quando adultas, serem mais solidárias com o próximo. 

Referiu que muitas vezes, com os bens arrecadados, promoviam retiros de confraternização em rios da cidade, para fortalecer a irmandade e coesão entre os jovens.

Outro jovem, Manuel Cayangula, que também esteve imbuído na actividade durante 15 anos consecutivos, via no Tchingongo um incentivo ao associativismo comunitário. 

Lembrou que, na altura, havia uma entrega total das crianças no bairro onde vivia para aquele tipo de evento, que simbolizava a chegada do ano novo, batendo as portas das pessoas com canções e danças específicas, ao ritmo do batuque e azagaias. 

“Era muito bonito, lembrou com alguma nostalgia. Até 2020, altura em que deixou de participar nestes eventos, recebiam de quase tudo, desde arroz, açúcar, fuba, bolo, bebidas e dinheiro”, contou. 

Manuel Cayangula entende que a nova geração precisa aprender mais daquilo que se viveu no passado, para que os valores culturais não possam se perder no seu todo. 

Já Helena da Paz, moradora do bairro Cantíflas, de 21 anos de idade, disse que participou do Tchingongo até 2019, altura em que o seu grupo sofreu assalto, quando se dirigia a uma residência, para pedir ajuda. 

A jovem ainda tem memória daquele episódio, pois, fruto daquele assalto, ela e outros companheiros ficaram sem os telemóveis.

Porém, sublinhou ser um evento agradável de se fazer, pois marcava momentos ímpares na travessia para o novo ano junto dos familiares e amigos. 

Por sua vez, a senhora Ana Manuela lamentou o facto de a criminalidade ser o principal motivo das crianças deixarem de praticar este ritual, sobretudo nos bairros periféricos. 

Natural da província de Benguela, Ana Manuela, que reside no Cuito há três anos, diz que a actividade se assemelha ao “Sesse”, nome atribuído na sua terra natal, tudo porque as crianças quando saem para as ruas de noite são ameaçadas pelos delinquentes. 

Especialistas falam em perda dos valores culturais 

Para o economista Gilberto Quinta, desde cedo o povo bieno e não só cresceu com o espírito de partilha, por isso refutou a ideia de que a situação económica das famílias esteja na base da perda da solidariedade entre as pessoas. 

O especialista referiu que o Tchingongo não era apenas uma actividade para famílias necessitadas, já que envolvia todos os extractos sociais, para, em conjunto, darem as boas vindas ao novo ano. 

Para ele, a prática servia como a identidade do povo bieno, consubstanciado no espírito de partilha e de recepção, sublinhando que os valores culturais estão a se perder a cada dia. 

Por isso, defendeu o resgate dos hábitos e costumes, de modo a que se possa se valorizar mais o espírito de partilha para uma convivência mais harmoniosa. 

Já Arches Rufino, psicólogo, entende que o Tchingongo constituía-se numa ferramenta de entretenimento num único espaço entre adultos, jovens, adolescentes e crianças, sem distinção.

“Actualmente, se desconhece isso”, lamentou. 

Os bons hábitos, prosseguiu, se perderam no seio dos jovens, que, outrora, aproveitavam o evento para a promoção de acções de reconciliação e fortalecer as relações inter-pessoais. 

O especialista culpou, por parte, o modernismo, pelo facto de agora as pessoas ficarem mais inclinadas para as festas de révellions, situação que, segundo ele, foge um pouco da identidade cultural dos Ovimbundus. LB/PLB





Fotos em destaque

SODIAM arrecada USD 17 milhões em leilão de diamantes

SODIAM arrecada USD 17 milhões em leilão de diamantes

Sábado, 20 Abril De 2024   12h56

Fazenda colhe mil toneladas de semente de milho melhorada na Huíla

Fazenda colhe mil toneladas de semente de milho melhorada na Huíla

Sábado, 20 Abril De 2024   12h48

Huambo com 591 áreas livres da contaminação de minas

Huambo com 591 áreas livres da contaminação de minas

Sábado, 20 Abril De 2024   12h44

Cunene com 44 monumentos e sítios históricos por classificar

Cunene com 44 monumentos e sítios históricos por classificar

Sábado, 20 Abril De 2024   12h41

Comuna do Terreiro (Cuanza-Norte) conta com orçamento próprio

Comuna do Terreiro (Cuanza-Norte) conta com orçamento próprio

Sábado, 20 Abril De 2024   12h23

Exploração ilegal de madeira Mussivi considerada “muito crítica”

Exploração ilegal de madeira Mussivi considerada “muito crítica”

Sábado, 20 Abril De 2024   12h19

Hospital de Cabinda realiza mais de três mil cirurgias de média e alta complexidade

Hospital de Cabinda realiza mais de três mil cirurgias de média e alta complexidade

Sábado, 20 Abril De 2024   12h16

Camacupa celebra 55 anos focado no desenvolvimento socioeconómico

Camacupa celebra 55 anos focado no desenvolvimento socioeconómico

Sábado, 20 Abril De 2024   12h10

Projecto "MOSAP 3" forma extensionistas para escolas de campo em todo país

Projecto "MOSAP 3" forma extensionistas para escolas de campo em todo país

Sábado, 20 Abril De 2024   12h05

Comunidade do Lifune (Bengo) beneficia de biofiltros

Comunidade do Lifune (Bengo) beneficia de biofiltros

Sábado, 20 Abril De 2024   11h58


Notícias de Interesse

Angola e Zimbabwe discutem reforço da cooperação

Segunda, 13 Maio De 2024   17h12

Ministro recebe delegação cubana

Segunda, 13 Maio De 2024   16h03

SADC realiza cimeira extraordinária 

Segunda, 13 Maio De 2024   10h44

+